domingo, 30 de maio de 2021

As fábulas constituem um alimento espiritual correspondente ao
leite na primeira infância.
Por intermédio delas a moral, que não é outra coisa mais que a própria
sabedoria da vida acumulada na consciência da humanidade, penetra na alma infante,
conduzida pela loquacidade inventiva da imaginação.
Esta boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores, às águas
e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde resulte a ‘moralidade’,
isto é, a lição da vida. O maravilhoso é o açúcar que
disfarça o medicamento amargo e torna agradável a sua ingestão.


*Monteiro Lobato*
Em “OBRAS COMPLETAS DE MONTEIRO LOBATO EM 30 VOLUMES,
2ª SÉRIE – LITERATURA INFANTIL – Vol. 15 – Fábulas
”,
São Paulo, Editora Brasiliense, 15ª Edição, 1969.

 “XXIV

CURTO, MAS ALEGRE

Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a vertigem...

[...]

Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação...

[...]

Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.


*Machado de Assis*
Em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, Capítulo XXIV,
São Paulo, Editora Moderna Ltda., 1ª Edição, 2015.

 “Era uma vez
 
Quando eu era pequenino,
Gostava de ouvir contar
Histórias de princesinhas
Encantadas ao luar.
 
Havia então lá em casa
Uma criada velhinha:
A Sérgia contava histórias
– e que graça que ela tinha!
 
Lendas de reis e de fadas,
Inda me encheis a lembrança!
Que saudades de vós tenho;
Ó meus contos de criança!
 
‘Era uma vez...’ As histórias
Começavam sempre assim;
E eu, então, sem me mexer,
Ouvia-as até ao fim.
 
Lembro-me ainda tão bem!
Os irmãos à minha beira,
Calados! E a boa Sérgia
Contava desta maneira:
 
‘Era uma vez...’ E, depois,
Olhos fitos nos meus lábios,
Ouvia contos sem conta
De gigantes e de sábios...

‘Era uma vez...’ E, por fim,
A voz da Sérgia parava...
E assim como eu te contei
Era como ela contava.
 
Ai! Que saudade, que pena,
Que nos meus olhos tu vês!
Eu sentava-me e ela, então,
Começava: – ‘Era uma vez...’

Mas já a Sérgia, nós sentados,
contava: ‘Era uma vez...’.


*Adolfo Simões Müller*
Em “O Príncipe Imaginário e outros Contos Tradicionais Portugueses”,
Lisboa, Distri Editora, 1985.


Mentira

                                                  A alguém que não sabia
                                                   O que era o amor.


Tu nunca viste, em noite luminosa,
As estrelas tremer e vacilar,
E depois, já cansadas, expirar
Numa agonia pálida e formosa?
 
Nunca viste uma nuvem vaporosa
Brincar nos céus, em noites de luar,
E nunca viste o vento dissipar
Essa nuvem pequena e descuidosa?
 
...O amor é como a bela e viva luz
Que, brilhando, nos prende e nos seduz,
Mas que depois se apaga enfraquecida.
 
O amor é como a nuvem delicada,
Que desfalece ao sopro da nortada
– é a mais linda mentira que há na vida...


*Adolfo Simões Müller*
Em “ASAS DE ÍCARO (VERSOS DOS DEZASSEIS ANOS)”,
Lisboa, Editora J. Rodrigues & Cª, 1ª Edição, 1926.

 O PÃO E A CULPA

Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.

Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.

Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.

Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se − e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.

Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.

Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…

Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.

      
*Vitorino Nemésio*
Em “O PÃO E A CULPA. POEMAS SEGUIDOS DE UMA VERSÃO DO DIES IRAE”,
Lisboa, Editora Livraria Bertrand, Primeira Edição, 1955.

Anjos
 
Os anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.
Na leira rasa de aves, Tu, que redras
Terra, névoas e espumas,
− Deus, de teu nome! − sabes
Que um anjo é pouco e imenso:
Por isso cabes
No anjo e ergues o incenso.
 
Desfaleço a pensar-te,
Ó ser de Anjos e Deus
Que baixa em mim:
Sobe-me na alma, que ando a procurar-te
E dizendo-te Deus
Acho-te assim.
 
Anjos são os terríveis
Modos de Deus connosco;
Nós, as suas possíveis
Transparências a fosco.
 
Lívidos, sem respiração
Ficávamos do toque
Da primeira asa vinda;
Mas eles rondam apenas a oração
Que múrmura os evoque,
E vão-se, e tornam ainda.
 
Deles para cima, ainda mais graus de glória
Relutam ao sentido
Que deles vem à memória
Como uma bolha de ar na água do olvido:
No mais, são tão pesados,
Os anjos leves ao justo…
Tão alados,
Mas desgostosos do nosso susto!
 
É isso! Disse-mo agora
O verbo súbito surpreso:
Ser anjo é espanto da demora
Nossa e do peso pávido
Que nos estende.
Terrível é quem toca terra
Para a levar, e não a rende.
 
Que o anjo, de si, é àvido
De transe e rapidez,
E é ele que chora
Nosso chumbo, hora a hora:
É ele que não entende
A nossa estupidez.


*Vitorino Nemésio*
Em “O PÃO E A CULPA. POEMAS SEGUIDOS DE UMA VERSÃO DO DIES IRAE”, Lisboa,
Editora Livraria Bertrand, Primeira Edição, 1955.

 “Pátria Minha
 
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo.
É minha pátria. Por isso, no exílio.
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei.
Como, por que e quando a minha pátria;
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água;
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias;
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos;
E sem meias, pátria minha;
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho;
Pátria, eu semente que nasci do vento;
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço;
Em contato com a dor do tempo, eu elemento;
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te, no entanto em mim como um gemido;
De flor; tenho-te como um amor morrido.
A quem se jurou; tenho-te como uma fé;
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto ajeito;
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra;
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu.
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha.
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo.
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes.
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação.
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta.
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular;
Que bebe nuvem, come terra,
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem,
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
‘Liberta que serás também’
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha.
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha.
Teu nome é pátria amada, é patriazinha.
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és.
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia,
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este aviograma:
‘Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes.’.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa – volume único”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A., 4ª Edição, 2004.

GRACIAS A LA VIDA

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dió dos luceros que, cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco,
Y en el alto cielo su fondo estrellado,
Y en las multitudes, el hombre que yo amo.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el oído, que en todo su ancho,
Graba noche y día grillos y canários;
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me ha dado el sonido y el abecedario,
Con él las palabras que pienso y declaro:
Madre, amigo, hermano y luz, alumbrando,
La ruta del alma del que estoy amando.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me dió el corazón, que agita su marco,
Cuando miro el fruto del cerebro humano;
Cuando miro el bueno tan lejos del malo,
Cuando miro el fondo de tus ojos claros.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto.
Así yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes, que es el mismo canto,
y el canto de todos, que es mi propio canto.

Gracias a la vida!


Letra e Música: Violeta Parra
(Violeta del Carmen Parra Sandoval)  
Extraído do disco “LAS ULTIMAS COMPOSICIONES DE VIOLETA PARRA”,
Editado pela gravadora RCA Victor, em novembro de 1966.

 
*******
 
OBRIGADA À VIDA

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me dois olhos que, quando os abro,
distingo logo o negro do branco,
e no alto céu o seu fundo estrelado,
e nas multidões o homem que eu amo.

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me o ouvido, que em todo o seu tamanho
grava noite e dia; grilos e canários.
Martelos, turbinas, latidos, chuvaradas
e a voz tão terna do meu namorado.

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me o som e o abecedário,
com ele as palavras que penso e declaro:
mãe, amigo, irmão e luz, iluminando
a rumo da alma do que estou amando.

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me a marcha de meus pés cansados;
com eles percorri cidades e charcos,
praias e desertos, montanhas e planícies,
e a tua casa, a tua rua e o teu pátio.

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me o coração, que agita a sua moldura
quando olho o fruto do cérebro humano,
quando olho o bom tão longe do mau,
quando olho o fundo dos teus olhos claros.

Obrigada à vida, que me deu tanto.
Deu-me o riso e deu-me o pranto;
assim distingo destino de desalento,
os dois materiais que formam o meu canto
e o canto de vocês, que é o mesmo canto,
e o canto de todos, que é o meu próprio canto.

Obrigada à vida!

 “Eu Voltarei

Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.

Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.

Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.

Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.

E eu morrerei tranqüilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei…
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.

Eu voltarei…


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 Velho Sobrado

Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.

Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
– um muro.

Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas,
de ferro forjado,
cede.

Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobradão dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados – passantes e vizinhos.
Aos poucos, a ‘fortaleza’
desabando.
Quem se lembra?
Quem se esquece?

Padre Vicente José Vieira.
D. Irena Manso Serradourada.
D. Virgínia Vieira
– grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamim Vieira,
Rodolfo Luz Vieira,
Ludugero,
Ângela,
Débora, Maria...
tão distante a gente do sobrado...

Bailes e saraus antigos.
Cortesia. Sociedade goiana.
Senhoras e cavalheiros...
– tão desusados...

O Passado...

A escadaria de patamares
vai subindo... subindo...
Portas no alto.
À direita. À esquerda.
Se abrindo, familiares.

Salas. Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes forradas de papel,
desenho de querubins, segurando
cornucópia e laços.
Retratos de antepassados,
solenes, empertigados.
Gente de dantes.

Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando
jarrões pesados.
Antigas flores
de que ninguém mais fala!
Rosa cheirosa de Alexandria.
Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim-do-cabo. Resedá.
Um aroma esquecido
– manjerona.

O Passado...

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
‘Clube Literário Goiano’.
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O Velho harmônico, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rima e risos.

D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem  com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
– Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?

Quem importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

sábado, 22 de maio de 2021

Ah, se fosse possível encontrar um anúncio desses!...

Precisa-se

[...]

Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria.

É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere.

Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo.

Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar.
 
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

[...]

*Clarice Lispector*
Em “A descoberta do mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 “O Deus de cada homem

Quando digo ‘meus Deus’
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo ‘meu Deus’,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo ‘meu Deus’,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo ‘meu Deus’,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dêle na micro-eternidade.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.

 “A Rua dos Cataventos

II

Dorme ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

SONETO DA VOLTA

Desde este instante, sem cessar, maldigo,
Aquele instante de felicidade!
Para que tu vieste ter comigo,
Meu amor! Minha luz! Minha saudade?!

Dês que te foste, foram-se contigo
Todos os sonhos desta mocidade...
A tua vinda – fora-me um castigo;
A tua volta – uma fatalidade!

Dês que te foste, dentro em mim plantaste
A ânsia infinita dos desesperados
Porque voltando, nunca mais voltaste...

Correm-me os dias de aflições, cobertos:
Eu entrei para o amor de olhos fechados
E saí para a dor de olhos abertos!


*Joaquim Vespasiano Ramos*
Em “Coisa Alguma...”, São Luís/MA, Conselho Estadual de Cultura, 3ª Edição, 1984.

TAÇA

Aquela taça de metal que, um dia,
À Laura, um dia assim, lhe oferecera,
Entre relevos delicados de hera,
‘Saudade’ em letras de rubis trazia.

E era um riso de amor e de poesia
Em cada riso ou flor da primavera...
E Laura, a um canto, cruel, por que a esquecera,
Laura que soluçou, porque eu partia?

Anos derivam. De remorsos presa
Não é que vai, acaso, à soledade
Da abandonada... Vai por fantasia.

Mas, como um choro, vê, vê com surpresa,
Desmancharem-se as letras da ‘Saudade’
Que aquela taça de metal trazia
.”

*Pedro Militão Kilkerry*
Em “ReVisão de Kilkerry –  de Augusto Campos”,
São Paulo, Brasiliense Editora, 2ª Edição, 1985.

TRISTEZAS

Há saudades que pungem docemente
Como as lembranças de um feliz passado,
Quando se vive ainda acalentado
Pelos sonhos de gozos do presente.

Mas, se da vida no areal candente
Para o vigor perdido, e abandonado
Volve aos céus da ventura o olhar magoado,
Como a saudade, então, é atroz, pungente!

E, ah! feliz do que em meio aos dissabores
Da alma ainda achar nos íntimos refolhos
Um mar de prantos que lhe afogue as dores!

Pois sofre mais quem desolado e exangue,
Não tendo nunca lágrimas nos olhos,
Tem dentro da alma lágrimas de sangue.


*Paulo de Arruda*
Em “GAZETA DE PARAOPEBA NÚMERO 2.123”,
Minas Gerais, 8 de janeiro de 1950.

SOL DAS ALMAS

À última luz que doira as tardes calmas,
À última luz de amor que beija o poente,
Se dá, no meu país, poeticamente,
A denominação de ‘Sol das Almas’!

Na montanha, a palmeira, de repente,
Brilha! O mistério lhe incandesce as palmas!
Para outro mundo leva o pó das salmas
A luminosidade comovente!

Vai morrer e ainda fulge! Ainda! Ainda!
Como um sorriso, finda a claridade,
Como um soluço, a claridade finda!

Adeus! Adeus! É o fim da Mocidade!
Nunca mais! Nunca mais! E era tão linda!
Qual é teu nome, Luz do Azul? – Saudade.


*José Martins Fontes*
Em “Sol das Almas”, Rio de Janeiro, A Noite S/A Editora, 1ª Edição, 1936.

AS DUAS PALMEIRAS

Quando passo buscando a humana lida,
A alma tecida de ilusões tão várias,
Junto à velha choupana carcomida
Vejo duas palmeiras solitárias.

Uma já morta, outra reverdecida,
Num desmancho de palmas funerárias,
E ao som da harpa do vento a que tem vida,
Saudosa plange salmodias e árias.

– Ó tu, que me olvidaste no caminho,
Meu coração deixando como um ninho,
Sozinho e triste, ao vento balouçando...

A saudade me diz, como em segredo:
Que és a palmeira que morreu bem cedo,
E eu sou aquela que ficou chorando.


*Jacinto de Campos*
Em “O Mundo Maravilhoso do Soneto” – Vasco de Castro Lima
(Coletânea de 232 Poetas Sonetistas fiéis ao Soneto),
Rio de Janeiro, Editora Livraria Freitas Bastos, 1987.

 “Pulvis

Áureos castelos da primeira idade,
Dourada fantasia de outras eras
Cuja luz de uma estranha claridade,
A alma me encheu de sóis e primaveras;

Glória, amor, ilusões da mocidade
Palpitando ao clarão de outras esferas;
Ânsias do afeto, espinhos da saudade,
Sonhos alados, fúlgidas quimeras;

Ideais da velha crença sonhadora;
Poemas tangidos da chorosa lira
(Que mais chorara se ditosa fora);

Por tanta coisa essa alma ainda suspira!
Tanta coisa, que a mente enganadora
Julgava ser verdade e era mentira!


*Joaquim Osório Duque-Estrada*
Em “Flora de maio, 1899/1901: versos”, Pref. Alberto de Oliveira,
Rio de Janeiro, Editora H. Garnier, 1902.

 “Canto de Regresso à Pátria

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os pássaros daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.


*Oswald de Andrade*
(José Oswald de Sousa Andrade Nogueira)
Em “Oswald de Andrade – Obras Completas – PAU BRASIL”, São Paulo,
Editora Globo S.A., 2ª Edição, 2011.

domingo, 16 de maio de 2021

 “Atitude

Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”,  
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.


Minha história romântica

No jardim do meu sonho, outr’ora, quando entrava
na vida, ao resplendor de um sol de cereja,
tive a promessa de uma flor que despontava,
na ilusão de quem vai possuir o que deseja.

E, ardente, do calor da minha alma que é lava
fulgida, à luz do olhar que nunca mais se veja,
tendo por humildade o pranto que eu chorava,
a flor se abriu, sorrindo, à sombra de uma igreja.

Uma tarde, porém, sinto que me envenena...
E na volúpia de augmentar a própria pena,
espedaço-a nas mãos! Ó Dor, que me confortas!

Hoje, a sós no jardim, às horas lardas, quedo,
vendo entre um gozo estranho e uma impressão de medo
boiarem na piscina umas pétalas mortas.

*Henriqueta Lisboa*
Em “Obras Completas I – Poesia Geral (1929-1983)”, São Paulo, Editora Livraria Duas Cidades, 1985.

 A lenda dourada e linda

A lenda dourada e linda
Que me contaram outrora,
Em minha alma dorme ainda
Mas é outra lenda agora.
 
Antigamente falava
De fadas, elfos e gnomos;
Hoje fala só da escrava
Indecisão que nós somos.
 
Mas elfos, gnomos e fadas,
Vistos certos, que mais são
Que as projecções enganadas
Dessa nossa indecisão?
 
Criamos o que não temos
Por nos doer não os ter,
E quasi tudo o que vemos
É o que ansiamos por ver.
 
Depois, cansados daquela
Visão que viu só o nada,
Fechamos toda janela,
Ficamos na alma fechada.
 
Mas inda esses entes todos
Que outrora eram visão,
Bailam mesmo, e inda a rodos,
Mas só no meu coração.

 
*Fernando Pessoa*
Em “Fernando Pessoa POESIA – 1931-1935”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2009.

Contraste

Quando partimos, no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres, ufanos,
Vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, nós enxergamos claramente
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede, exatamente,

O contrário dos tempos de rapaz:
– Os desenganos vão conosco à frente
E as esperanças vão ficando atrás.


*Pe. Antônio Tomás*
Em “Almanaque Poético de uma Cidade do Interior (organização, seleção
e notas, Vicente Freitas Araújo)
”, Bela Cruz/Ceará, Tanoa Editora, 2004.

 “Olhos tristes

Olhos mais tristes ainda do que os meus
são esses olhos com que o olhar me fitas.
Tenho a impressão que vais dizer adeus
este olhar de renúncias infinitas.

Todos os sonhos, que se fazem seus,
tomam logo a expressão de almas aflitas.
E até que, um dia, cegue à mão de Deus,
será o olhar de todas as desditas.

Assim parado a olhar-me, quase extinto,
esse olhar que, de noite, é como o luar,
vem da distância, bêbedo de absinto…

Este olhar, que me enleva e que me assombra,
vive curvado sob o meu olhar
como um cipreste sobre a própria sombra.


*Henriqueta Lisboa”
Em “Obras Completas I – Poesia Geral (1929-1983)”, São Paulo, Editora Livraria Duas Cidades, 1985.

 “Outra canção

                                          PARA CELSO E LYA LUFT

Não me deixem ir tão só,
Tão só, transido de frio...
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio!
Como alguém que adormecendo
E umas vozes escutando,
Nem soubesse que as ouvia,
Nem soubesse que as ouvia
Ou se estava sonhado,
Eu quero um renque de vozes
Por toda a margem do rio:
Vozes de amigo calor
Na lenta e escura descida
Como lanternas de cor
E aonde mais longe eu me for
(Quanto mais longe da vida!)
A borboleta perdida
Da tua voz, pobre amor...


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre,  
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.

 “ROMANCE LIII
ou
DAS PALAVRAS AÉREAS

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
– e estais no bico das penas,
    e estais na tinta que as molha,
    e estais nas mãos dos juízes,
    e sois o ferro que arrocha,
    e sois barco para o exílio,
    e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?

– Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
– o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
– a umidade dos presídios,
– a solidão pavorosa;
– duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
– e a sentença que caminha,
– e a esperança que não volta,
– e o coração que vacila,
– e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
– sois madeira que se corta,
– sois vinte degraus de escada,
– sois um pedaço de corda...
– sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
– sois um homem que se enforca!


*Cecília Meireles*
Em “Obra Poética – Volume Único”, Rio de Janeiro, Nova Aguilar Editora, 3ª Edição (6ª Reimpressão), 1987.

A mulher

I

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: ‘Olhem, vejam
É aquela a infame!’ e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!

II

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!


*Florbela Espanca*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA − Florbela Espanca”, São Paulo,
Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2015.

O cântico da terra

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranquilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

 “A gleba me transfigura

Sinto que sou a abelha no seu artesanato.
Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado, procriador e fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas
e tão mal remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos maduros
e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha trilha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice
e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.

Eu me procuro no passado.
Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros.
Procuro Aninha, a inzoneira que conversava com as formigas,
e seu comadrio com o ninho das rolinhas.
Onde está Aninha, a inzoneira,
menina do banco das mais atrasadas da escola de Mestra Silvina…
Onde ficaram os bancos e as velhas cartilhas da minha escola primária?
Minha mestra… Minha mestra… beijo-lhe as mãos,
tão pobre!…
Meus velhos colegas, um a um foram partindo, raleando a fileira…
Aninha, a sobrevivente, sua escrita pesada, assentada
nas pedras da nossa cidade…

Amo a terra de um velho amor consagrado
através de gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos.

Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol.
Assuntamos de um trovão longínquo, de um fuzilar
de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador,
abatendo as lavouras carecidas.
Festejamos a formação no espaço de grandes nuvens escuras
e pejadas para a salvação das lavouras a se perderem.
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.

Minha identificação com a gleba e com sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou a formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.
 

Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.

*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

sábado, 8 de maio de 2021

 “Serenata  

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

 Canção do vento e da minha vida
 
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.


*Manuel Bandeira*
Em “Coleção Melhores Poemas”, São Paulo, Global Editora, 16ª Edição, 2004, pág. 121.

 “Intermezzo

Nem tudo pode estar sumido
ou consumido…
Deve – forçosamente – a qualquer instante
formar-se, pobre amigo, uma bolha de tempo nessa Eternidade…

e onde
– o mesmo barman no mesmo balcão,
por trás a esplêndida biblioteca de garrafas,
fonte de nossa colorida erudição –
haveremos de continuar aquela nossa velha discussão
sobre tudo e nada
até
que, fartos de tudo e nada,
desta e da outra vida,
a rir como uns perdidos,
a chorar como uns danados,
beberemos os dois nos crânios um do outro…
até o teto desabar!

(Perdão! até a bolha rebentar…)


*Mario Quintana*
Em “Esconderijos do Tempo”, São Paulo, Editora L&PM Pocket, 1ª Edição, 1980.

 “Olhos nuns olhos

De onde vêm, aonde vão teus olhos, criança,
tão cansados assim de caminhar?
Dessa tua existência nova e mansa
como pode provir um tal pesar?

A alma de fantasia não se cansa!
Nunca existiu tristeza nesse olhar;
é que a minha mortal desesperança
te olha e nos olhos teus vai-se espelhar.

Com toda a vista em tua vista presa,
penso: uma dor tão dolorosa assim
só há na minha interna profundeza...

Não me olhes mais, formoso querubim!
Que vejo nos teus olhos a tristeza
dos meus olhos olhando para mim.


*Gilka Machado*
Em “Poesias Completas, Gilka Machado”, Rio de Janeiro,
Editora Cátedra-Brasília/INL, 1ª Edição, 1978.

 O Menino Grande

Também eu, também eu.
joguei às escondidas, fiz baloiços,
tive bolas, berlindes, papagaios,
automóveis de corda, cavalinhos...

Depois cresci,
tornei-me do tamanho que hoje tenho;
os brinquedos perdi-os, os meus bibes
deixaram de servir-me.
Mas nem tudo se foi:
ficou-me,
dos tempos de menino
esta alegria ingénua
perante as coisas novas
e esta vontade de brincar.

Vida!,
não me venhas roubar o meu tesoiro:
não te importes que eu ria,
que eu salte como dantes.
E se eu riscar os muros
ou quebrar algum vidro
ralha, ralha comigo, mas de manso...

(Eu tinha um bibe azul...
Tinha berlindes,
tinha bolas, cavalos, papagaios...
A minha Mãe ralhava assim como quem beija...
E quantas vezes eu, só pra ouvi-la
ralhar, parti os vidros da janela
e desenhei bonecos na parede...)

Vida!, ralha também,
ralha, se eu te fizer maldades, mas de manso,
como se fosse ainda a minha Mãe...

 
*Sebastião da Gama*
Em “ITINERÁRIO PARALELO”, Lisboa, Edições Ática, 1ª Edição Póstuma, 1967.

Visita à casa paterna

                                                  A minha irmã Isabel.

Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez, do amor materno,
Tomou-me as mãos – olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que, da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha Mãe... O pranto

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há de?
– Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade...


*Guimarães Júnior*
(Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior)
Em “A Circulatura do Quadrado – Alguns dos Mais Belos Sonetos
de Poetas cuja Mátria É a Língua Portuguesa, Introdução,
coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho
”, Porto/Portugal,
Edições UNICEPE – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

 “Infância

E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
– batendo, batendo assombrado!


*Henriqueta Lisboa*
Em “Obras Completas I – Poesia Geral (1929-1983)”, São Paulo, Editora Livraria Duas Cidades, 1985.

 “DIA QUE VIRÁ

Meu filho:
 
Quando um dia procurares
e não me vires mais,
quando a certeza de minha morte
entrar em tua alma
e fizer teu coração doer,
– dá-me teu pranto
que através dele estarei contigo.
Nas lágrimas que chorares,
chorarei;
porque minha dor,
a dor de minha voz não ser ouvida,
a dor de não poder te consolar
será tão grande,
tão esmagadora,
tão penetrante e forte,
que ao sentir-me afastada
do caminho de tua vida,
hei de morrer de novo
após a morte!


*Virginia Gasparini Tamanini*
Em “MARCAS DO TEMPO,  POESIA”,  Brasília/DF, Litograf – Gráfica e Editora, s/d.

Reza de Mãe

Nem imagino onde eles estão agora.
Era mais fácil quando vestiam o pijama
e pediam a história do elefante azul.
Parece que restou um cheirinho de talco
na almofada do quarto;
deve ser só impressão...
Nesse tempo, eu não tinha medo da noite
ela era o telhado dos poetas;
as sombras eram apenas a franja
mal aparada dos anjos.
A trava na porta me bastava.
Hoje, as camas vazias me assustam.
Elas acusam o passar das horas
e denunciam a revoada dos pardais,
os meus pardais.
Já não posso abrir minhas asas sobre eles.
São pequenas demais para cobri-los,
frágeis demais para defendê-los.
Ainda bem que me resta a prece,
minha aliada nos dias de nuvens e
nas madrugadas sem fim.
Peço perdão pela insistência,
mas reza de mãe é assim mesmo:
pura perseverança.
Que Deus abençoe minhas crianças
de barba na cara e calçado quarenta e dois
(o resto na vida é secundário e fica pra depois);
que as ilumine com Seu sorriso
e, se preciso, acione Seu séquito de estrelas
(se tiver que usá-las, prometo devolvê-las).
E quando o cansaço me quiser já recolhida,
hei de poder sorrir pela missão cumprida.


*Flora Figueiredo*
Em “Chão de Vento – Poesia”, São Paulo, Geração Editorial, 1ª Edição, 2005.

 “A canção de qualquer mãe

Que nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros, como a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos – algo que só pode nascer entre nós. Que quando eu me aproxime, meu filho, você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha, você não se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada, como desde o primeiro instante.

Que, quando se lembrarem de sua infância, não recordem os dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos à flor da pele – aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se dos deliciosos momentos em família, das risadas, das histórias na hora de dormir, do bolo que embatumou, mas que vocês, pequenos, comeram dizendo que estava maravilhoso. Que pensando em sua adolescência não recordem minhas distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.

Que quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem em chamar: mãe! Seja para prender um botão de camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou preocupação. Não é preciso constrangerem-se de ser filhos querendo mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores, como eu tenho e tive as minhas. Que, independendo da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro. Que essa consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não entender vai absorver; e o que não absorver vai enfeitar e tornar bom.

Que quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento, ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seu caminho, mesmo que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro seja de grandes abraços e boas risadas. Esse é um tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos vocês encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque vocês estão aí. Que quando pareço mais cansada vocês não tenham receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que do seu carinho, da sua atenção natural e jamais forçada. E, se precisar de mais que isso, não se culpem se por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor: as coisas são assim. Que, se um dia eu começar a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa, mesmo quando se impacientarem. Toda a transformação do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma forma de crescimento.

Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicar os enigmas da existência. A sensação que vinha do seu cheiro, da sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada terra. E assim sendo, meus filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter.


*Lya Luft*
Em “Revista Veja”, Edição nº 2.164, 12 de maio de 2010.

domingo, 2 de maio de 2021

 “Canção a caminho do céu

Foram montanhas? Foram mares?
Foram os números...? – não sei.
Por muitas coisas singulares,
não te encontrei.

E te esperava, e te chamava,
e entre os caminhos me perdi.
Foi nuvem negra? Maré brava?
E era por ti!

As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
o meu coração.

Tal como sou, não te convido
a ires para onde eu for.

Tudo que tenho é haver sofrido
pelo meu sonho, alto e perdido,
– e o encantamento arrependido
do meu amor.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.