domingo, 2 de maio de 2021

O beco da escola

Um corricho, de passagem,
um dos muitos vasos comunicantes
onde circula a vida humilde da cidade.
Um bequinho de brinquedo, miudinho.
Chamado no meu tempo de menina
– beco da escola.

Uma braça de largura, mal medida.
Cinquenta metros de comprido… avaliado.
Bem alinhado. Direitinho.
Beco da escola…
Escola de velhos tempos.
Tempos de velhas mestras.
Mestra Lili. Mestra Silvina. Mestra Inhola.
Outras mais, esquecidas mestras de Goiás.

Mestra Lili… o seu perfil:
Miudinha, magrinha.
Boa sobretudo. Força moral.
Energia concentrada. Espírito forte.
O hábito de ensinar, ralhar, levantar a palmatória,
Afeiçoara-lhe o conjunto
– enérgico, varonil.
A escola da mestra Lili
era mesmo naquela esquina.
Casa velha – ainda hoje a casa é velha.
Janelas abertas para o beco.
Sala grande. A mesa da mestra.
Bancos compridos, sem encosto.
Mesa enorme dos meninos escreverem
lições de escrita.
De ruas distantes a gente ouvia,
quartas e sábados, cantada em alto coro
a velha tabuada.

O bequinho da escola
lembra mestra Lili.
Lembra mestra Inhola.

Lembra mestra Silvina.
Sá Mônica. Mestra Quina. Mestra Ciriáca.

Esquecidas mestras de Goiás.
Elas todas – donzelas,
sem as emoções da juventude.
Passavam a mocidade esquecidas de casamento,
atarefadas com crianças.
Ensinando o bê-a-bá às gerações.

O beco da escola é uma transição.
Um lapso urbanístico
entre a Vila Rica e a Rua do Carmo.
Tem janelas.
Uma casinha triste de degraus.
Velhos portões fechados, carcomidos.
Lixo pobre.
Aqui, ali, amparadas no muro,
umas aventureiras e interessantes flores de monturo.

Velhas mestras… Velhas infâncias…
Reminiscências vagas…

O bequinho da escola brinca de esconder.
Corre da Vila Rica – espia a Rua do Carmo.
É um dos mais singulares e autênticos becos de Goiás.
Tem a marca indisfarçada dos séculos
e a pátina escura do Tempo.
Beco recomendado a quem busca o Passado.
Recomendado – sobretudo –
aos poetas existencialistas,
pintores, a Frei Nazareno.
Tem portões vestidos de velhice. Tem bueiro.
Tem muros encarquilhados,
rebuçadinhos de telhas.
São de velhas donas credenciadas
de velhas descendências
– guerreiros do Paraguai.
Bem estreito e sujo
como compete a um beco genuíno.
Esquecido e abandonado,
no destino resumido dos becos,
no desamor da gente da cidade.

Poetas e pintores
românticos, surrealistas, concretistas, cubistas,
eu vos conclamo.
Vinde todos cantar, rimar em versos,
bizarros, coloridos,
os becos da minha terra.
Ao meio-dia desce sobre eles,
vertical,
um pincel de luz,
rabiscando de ouro seu lixo pobre,
criando rimas imprevistas nos seus monturos.

De noite… noite de quarto,
a cidade vazia se recolhe
num silêncio avaro, severo.
Horas antigas do passado.
– Concentração.
Almas penadas doutro mundo.
Procissão das almas
vai saindo da porta fechada das igrejas.
Vem vindo pelas ruas.
Desaparecem pelas esquinas.

Responsam pelos becos.
Altas visagens: assombração…
O diabo no corpo…
Lobisomem…
Simbolismo dos velhos avatares
.”

*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

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