domingo, 30 de maio de 2021

Anjos
 
Os anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.
Na leira rasa de aves, Tu, que redras
Terra, névoas e espumas,
− Deus, de teu nome! − sabes
Que um anjo é pouco e imenso:
Por isso cabes
No anjo e ergues o incenso.
 
Desfaleço a pensar-te,
Ó ser de Anjos e Deus
Que baixa em mim:
Sobe-me na alma, que ando a procurar-te
E dizendo-te Deus
Acho-te assim.
 
Anjos são os terríveis
Modos de Deus connosco;
Nós, as suas possíveis
Transparências a fosco.
 
Lívidos, sem respiração
Ficávamos do toque
Da primeira asa vinda;
Mas eles rondam apenas a oração
Que múrmura os evoque,
E vão-se, e tornam ainda.
 
Deles para cima, ainda mais graus de glória
Relutam ao sentido
Que deles vem à memória
Como uma bolha de ar na água do olvido:
No mais, são tão pesados,
Os anjos leves ao justo…
Tão alados,
Mas desgostosos do nosso susto!
 
É isso! Disse-mo agora
O verbo súbito surpreso:
Ser anjo é espanto da demora
Nossa e do peso pávido
Que nos estende.
Terrível é quem toca terra
Para a levar, e não a rende.
 
Que o anjo, de si, é àvido
De transe e rapidez,
E é ele que chora
Nosso chumbo, hora a hora:
É ele que não entende
A nossa estupidez.


*Vitorino Nemésio*
Em “O PÃO E A CULPA. POEMAS SEGUIDOS DE UMA VERSÃO DO DIES IRAE”, Lisboa,
Editora Livraria Bertrand, Primeira Edição, 1955.

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