domingo, 28 de janeiro de 2018

A Nuvem Carolina

No alpendre da casa de um antigo sítio
Onde morei por longo tempo – longos trabalhos –
Todas as manhãs eu vinha ver o dia
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto permaneciam... entre-havia
Dois morros de matas virgens coroados.
Na abertura desses montes, sempre aparecia,
Na mesma posição, na mesma hora matutina,
Uma nuvem cor-de-cinza e leve bruma,
Com fímbrias e vestígios cor-de-ouro;
– Uma nuvem ficava entre os dois capões do mato
Por alguns quantos de tempos,
Por alguns modos de sombras temporais.

Uma vez tive a impressão que ela me acenava,
Me fazia, e tanto me fazia, em mímica, sinais:
– Gestos de fuga, de fraga, de fronde e curso d’água –
Símbolos de uma linguagem nova quase toda indecidível;
Não compreendi, a princípio, aquilo, o que nela significava,
Mas senti que eram gestos, e gestos são palavras.

Da formalização dos gestos da Natureza
Pode nascer sempre uma linguagem.

Resolvi subir o morro pela beira do corgo,
Plantado de jaqueiras novinhas.
E fui caminhando até junto da abertura das matas
Onde a formosa nuvem de cinza e ouro
Me aguardava. Perto cheguei.
Como numa só voz os gestos se fundiram,
A mim aderiram, a mim se ajustaram (juntos/disjuntos)
A mim se advinharam,
E enfim disseram em voz nevoenta:
– Estou cansada de ser um vôo,
Um vôo viúvo de uma asa; desejava ter
Comigo a asa... uma asa que fugisse, que batesse,
Que vibrasse no ar com um som...
– E eu lhe disse: – Por que apenas uma asa?
Podias ter/ser um ramo, um ramo de flores.
Um ramo de folhas verdes e sobreverdes,
Ramo de uma árvore das mais belas desta mata.
– E ela: – Ah! Quem me dera!
Me vestir de amarelo nos dias de Pau D’Arco,
Me vestir de roxas sucupiras nos momentos dos ares tristes.
Quem me dera!
– Voltei a dizer-lhe: – E por que não um animal?
Um animal que exprimisse os atos da asa?
Ou... mesmo qualquer um outro do teu agrado?
– Ela: – Sim, seria bom, gostaria de ser uma garça
Que é, só e toda, uma asa. Mas, poderia ser uma ovelha
Pastando o dia todo nos deslizes das colinas
Ou uma novilha já no momento da necessidade
Do amor. Podia ser uma novilha amorosa.
– De súbito me veio a pergunta: – E uma mulher?
Nunca pensaste em ser uma mulher?

Senti que a nuvem, toda em gestos de fraga e curso d'água,
Me transmitiu uma expressão de espanto.
Uma expressão de extrema... extrema o quê?
– Perdi o contato com a linha dos seus gestos;
Mas voltei a compreender logo em seguida.
Falou, depois de algum tempo:
– Pensei, sim, pensei muitas vezes
Mas, por fim de tudo pensando, concluí
Que mais valeria possuir de novo a asa:

Mulher deste meu vôo. No meu pensamento,
Ser árvore, ser ovelha, ou ser mulher
Que valem? Todas morreram.
Todas se perderam, todas me... esqueceram.

A nuvem se refere a uma anteépoca
Mais remota profunda da sua origem.

Com essas palavras começou a se esconder
Por detrás do morro, sem mesmo um gesto de despedido abandono.
– Nuvem de ouro e cinza, se fosses mulher
Eu te chamaria Carolina:
Carolina se chamaram minha mãe e minha irmã.
Ambas, há muito, faleceram,
Mas eu, em ti, as saudaria todas as manhãs.

Com as minhas últimas palavras, a nuvem
Levada pelo vento, já se ocultara,
Como em outros dias, por detrás da mata.
Desci o corgo, pela sua margem de gramíneas,
Ao longo, longo das jaqueiras novinhas;
Voltei a casa, e dessa conversa, e mais de tudo, esqueci.
Tarde da noite daquele dia, um vento forte: um sopro frio/forte,
Uma chuva contínua e prolongada
Passaram sobre o telhado; as bátegas bateram
Sobre as telhas, como dedos num teclado.
– O vento soando entre as ripas e os caibros,
Como o ar nos tubos de um órgão. –
Era uma chuva noturna, como muitas outras, e a sua música banal
Cantava no silêncio dos ares campesinos.
– Desperto, escutei toda a sua sinfonia...

Notei, porém, que acompanhando o som da chuva, havia
Qualquer coisa de choro e pranto malogrado.
De inundado rumor de mágoa se envolvia,
Em vento e chuva, a casa toda:
Como se fosse objeto de sonho e de magia,
Pelos ares da noite alguém chorava.
Enfim passou a forte chuva, num adeus de aguaceiro
E o silêncio voltou muito limpo e lavado.
Passou. Tudo tornou ao sossego campestre.
– Dormi até o fim da noite.

Na manhã seguinte, como sempre, ao alpendre
Saí, para ver o dia, para ver o dia,
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia amanhecia.

Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia
Não aparecera entre os capões do mato: não. não. Não... não...
Em todas as manhãs seguintes...  sucessivas...
– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais
Com gestos de fuga e longo vôo.
– Gestos de fraga, de fronde e curso d’água.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa (Signo Estrelado) - Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.
Desventura

Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, – perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Realização da vida

Não me peças que cante,
pois ando longe,
pois ando agora
muito esquecida.
   
Vou mirando no bosque
o arroio claro
e a provisória
flor escondida.

E procuro minha alma
e o corpo, mesmo,
e a voz outrora
em mim sentida.

E me vejo somente
pequena sombra
sem tempo e nome,
nisto perdida,

– nisto que se buscara
pelas estrelas,
com febre e lágrimas,
e que era a vida.


*Cecília Meireles*
Em “Mar absoluto e outros poemas”, Porto Alegre, Global Editora, 2ª Edição, 2015.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Canção elegíaca

Quando os teus olhos fecharem
Para o esplendor deste mundo,
Num chão de cinza e fadigas
Hei de ficar de joelhos;
Quando os teus olhos fecharem
Hão de murchar as espigas,
Hão de cegar os espelhos.

Quando os teus olhos fecharem
E as tuas mãos repousarem
No peito frio e deserto,
Hão de morrer as cantigas;
Irá ficar desde e sempre
Entre ilusões inimigas,
Meu coração descoberto.

Ondas do mar – traiçoeiras –
A mim virão, de tão mansas,
Lamber os dedos da mão;
Serenas e comovidas
As águas regressarão
Ao seio das cordilheiras;

Quando os teus olhos fecharem
Hão de sofrer ternamente
Todas as coisas vencidas,
Profundas e prisioneiras;
Hão de cansar as distâncias,
Hão de fugir as bandeiras.

Sopro da vida sem margens,
Fase de impulsos extremos,
O teu hálito irá indo,
Longe e além reproduzindo
Como um vento que passasse
Em paisagens que não vemos;
Nas paisagens dos pintores
Comovendo os girassóis
Perturbando os crisântemos.

O teu ventre será terra
Erma, dormente e tranquila
De savana e de paul;
Tua nudez será fonte,
Cingida de aurora verde,
A cantar saudade pura
De abril, de sonho, de azul,
Fechados no anoitecer.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa (Signo Estrelado) - Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.
Soneto

Aceitarás o amor como eu o encaro?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.


*Mário de Andrade*
Em “MÁRIO DE ANDRADE - Poesias Completas (Volumes 1 e 2)”, 

Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2015.
A última cantiga

Num dia que não se advinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-se: ‘Era a expressão
que ela ultimamente tinha.’

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça
– toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito ‘Não’.

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.
Pausa

Agora é como depois de um enterro.
Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo,
junto à parede lisa, de onde brota um sono vazio.

A noite desmancha o pobre jogo das variedades.
Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas,
e mergulha silêncio na última veia da esperança.

Deixa tocar esse grilo invisível
– mercúrio tremendo na palma da sombra –
deixa-o tocar a sua música, suficiente
para cortar todo arabesco da memória...


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Solidão

Desesperança das desesperanças...
Última e triste luz de uma alma em treva...
– A vida é um sonho vão que a vida leva
Cheio de dores tristemente mansas.

– É mais belo o fulgor do céu que neva
Que os esplendores fortes das bonanças
Mais humano é o desejo que nos ceva
Que as gargalhadas claras das crianças.

Eu sigo o meu caminho incompreendido
Sem crença e sem amor, como um perdido
Na certeza cruel que nada importa.

Às vezes vem cantando um passarinho
Mas passa. E eu vou seguindo o meu caminho
Na tristeza sem fim de uma alma morta.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - volume único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar S/A, 4ª Edição, 2004.
Purificação

Senhor, logo que eu vi a natureza
As lágrimas secaram.
Os meus olhos pousados na contemplação
Viveram o milagre de luz que explodia no céu.

Eu caminhei, Senhor.
Com as mãos espalmadas eu caminhei para a massa de seiva
Eu, Senhor, pobre massa sem seiva
Eu caminhei.
Nem senti a derrota tremenda
Do que era mau em mim.
A luz cresceu, cresceu interiormente
E toda me envolveu.

A ti, Senhor, gritei que estava puro
E na natureza ouvi a tua voz.
Pássaros cantaram no céu
Eu olhei para o céu e cantei e cantei.
Senti a alegria da vida
Que vivia nas flores pequenas
Senti a beleza da vida
Que morava na luz e morava no céu
E cantei e cantei.

A minha voz subiu até ti, Senhor
E tu me deste a paz.
Eu te peço, Senhor
Guarda meu coração no teu coração
Que ele é puro e simples.
Guarda a minha alma na tua alma
Que ela é bela, Senhor.
Guarda o meu espírito no teu espírito
Porque ele é a minha luz
E porque só a ti ele exalta e ama.


*Vinicius de Moraes*
Em “O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA”, Rio de Janeiro,
Editora Companhia Das Letras, 1ª Edição, 2008.
Pequena canção

Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Desacerto

Ternura em movimento,
vamos os dois – o sol e a sombra juntos –
O futuro e o passado no presente.
O que te digo é urgente;
O que tu me respondes não tem pressa.
A minha voz acaba na vertente
Onde a tua começa.

Apertamos as mãos enamorados.
Uma quente, outra fria...
E sorrimos às flores que no caminho
Nos olham com seus olhos perfumados.
Tu, de pura alegria;
Eu, de melancolia...
Um a cuidar, e o outro sem cuidados.

Canta um ribeiro ao lado.
Ambos o ouvimos, mas diversamente.
O que em ti é promessa de frescura
À terra da semente semeada,
Em mim é já certeza de secura
De raiz arrancada.

Almas amantes e desencontradas
na breve conjunção
Que tiveram na vida,
Levo de ti um halo de pureza.
Deixo-te a inquietação duma lembrança...
E é inútil pedir mais à natureza,
Surda ao meu desespero e à tua confiança.


*Miguel Torga*
Em “Poesia Completa”, Lisboa/Portugal, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.
Absolvição

Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-me os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar,
Maldigo o arbítrio da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.”

*Miguel Torga*
 Em “Poesia Completa”, Lisboa/Portugal, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.
Canção Póstuma

Fiz uma canção para dar-te;
porém tu já estavas morrendo.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido, a Arte...

É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro de pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.

Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos,
- atento a um canto mais profundo.

E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.

E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que Arte
se ocupam as pessoas mortas.

Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais do que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.


*Cecília Meireles*
Em “RETRATO NATURAL”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.
Milagre 
 
II

Depois de tantos anos, frente a frente,
Um encontro... O fantasma do meu sonho!
E, de cabelos brancos, mudamente,
Quedamos frios, num olhar tristonho.

Velhos!... Mas, quando, ansioso, de repente,
Nas suas mãos as minhas palmas ponho,
Ressurge a nossa primavera ardente,
Na terra em bênçãos, sob um sol risonho:

Felizes, num prestigio, estremecemos;
Deliramos, na luz que nos invade
Dos redivivos êxtases supremos;

E fulgimos, volvendo a mocidade
Aureolados dos beijos que tivemos,
No divino milagre da saudade.


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Sarças de Fogo)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Valsa

Fez tanto luar que eu pensei em teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo…
– Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.
Vaga no Azul

Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.


*Fernando Pessoa*
Em “Cancioneiro – Obra Poética V”, São Paulo, L&PM Pocket Editores, 1ª Edição, 2007.

domingo, 7 de janeiro de 2018

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. 
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos 
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. 
(Enlacemos as mãos). 
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida 
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, 
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, 
Mais longe que os deuses. 
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. 
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. 
Mais vale saber passar silenciosamente 
E sem desassossegos grandes. 
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, 
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, 
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, 
E sempre iria ter ao mar. 
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, 
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias, 
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro 
Ouvindo correr o rio e vendo-o. 
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as 
No colo, e que o seu perfume suavize o momento – 
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, 
Pagãos inocentes da decadência. 
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois 
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, 
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos 
Nem fomos mais do que crianças. 
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, 
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. 
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio, 
Pagã triste e com flores no regaço.” 

*Ricardo Reis (pseudônimo de Fernando Pessoa)*
Em “ODES de RICARDO REIS”, Lisboa, Edições Ática, 1ª Edição, 1946.
Recordação

Vi-te. Era noite, a lua descorada
Brilhava nas paragens luminosas
E a noite estava toda embalsamada,
Por que exalavam no canteiro as rosas.
Das esferas azuis, de etéreas pagas.
A luz descia cristalina, em jorros:
Ao longe as águas sem rumos das vagas
E a solidão tristíssima dos morros!

Quando te vi, quando me viste, amamos...
Branca, não sei se recordas... quando
Era a terra um rosal e, pelos ramos,
O mês do incenso ia desabrochando...
Amamo-nos e vivemos docemente
Sobre a terra cheirosa, erma de escolhos,
E eu me banhava apaixonadamente
No santíssimo orvalho de teus olhos

Que febre imensa a do primeiro beijo!
Mornos, teus seios virgens palpitavam...
Ah, quantas vezes, cheios de desejo
Os meus lábios nos teus castanholavam!
Então, se eu te falava em noivado,
Tu me dizias: ‘meu amor espera,
Deixa que alveje a lua se pecado,
Até que volte o sol da primavera’

Desse tempo risonho do passado
Cheio de tantos sonhos, de ilusões,
Eu tenho o peito agora incendiado
No fogo vivo das recordações...
De ti me lembro e quando, nestas plagas,
A luz desaba cristalina, em jorros,
Eu vejo ao longe, sem rumos, as vagas
E a solidão tristíssima dos morros.


*Ferreira Itajubá*
Em “Poesias Completas”, Natal/RN, Fundação José Augusto, 2ª Edição, 1965.
Barcarola

Não te recordas, querida,
Da noite em que nos amamos,
Sob a frescura dos ramos
Da laranjeira florida?
Gemia a viola na aldeia,
A brisa um hino entoava
E a luz da lua inundava
A terra, de rosas cheia!

Lá na planície da serra,
junho alourava as espigas,
vinham de longe as. cantigas
das moças de minha terra,
quando te vi, linda flor,
e da nolte à doce calma,
derramaste na minha alma
o efluvio do teu calor!

Saudade! quanta saudade
da noite em que, ao céu sereno,
tu me abriste o seio, pleno
de aroma e de mocidade!
A' sombra da laranjeira,
por ti, visão da alegria,
do meu beijo a cotovia
cantou, pela vez primeira!

Tu esqueceste os ditosos
domingos embalsamados,
e os cantos apaixonados
dos jangadeiros saudosos
que, ao céu transparente e azul,
do estio nas tardes belas,
passavam, molhando as velas
abertas ao vento sul!

Tudo esqueceste, e mais nada
resta em tua alma enganosa,
dessa paixão desditosa,
dessa ilusão desfolhada,
que lembro todos os dias,
pensativo, a cada instante,
Ó lavandisca inconstante
das areias alvadias!

Talvez que esta alma não possa
acreditar, nunca mais,
nos teus beijos aromais,
nos teus sorrisos de moça!
Ai, meu doce malmequer,
que me deixaste em janeiro,
– como tudo é passageiro
no coração da mulher!


*Ferreira Itajubá*
Em “Poesias Completas”, Natal/RN, Fundação José Augusto, 2ª Edição, 1965.
Canção da Rosa de Pedra

Essa, a rosa da promessa
da noite do nosso amor,
murcha rosa indiferente,
sem alma, escassa de olor?

Por que essa rosa de pedra,
o meu presente nupcial?
– Pantanosa flor de lama
gerada em brisas de sal.

O riso da minha infância,
gritam-no abismos de sangue
onde boia impura, incauta,
flor de pedra, flor de mangue.

A vã promessa incumprida
na noite do nosso amor
repousa em praias de sombra
navega em mares de dor.


*Zila Mamede*
Em “Navegos (Poesia reunida, 1953-1978)”, Belo Horizonte, Editora Vega S.A, 1ª Edição, 1978.
Caminho do Sertão

                                    A meu irmão João Cancio

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos.

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos…
Vamos mais devagar… de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a noite ensina ao desespero e à dor…

Ao longe, a Lua vem dourando a treva…
Turíbulo imenso para Deus eleva
O incenso agreste da jurema em flor.


*Auta de Souza*
Em “HORTO”, Natal/RN, Fundação José Augusto, 4ª edição, 1970.
Num Leque

Na gaze loura d’este leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado…
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado.

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado…
Até minh’alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores.


*Auta de Souza*
Em “HORTO”, Natal/RN, Fundação José Augusto, 4ª edição, 1970.
Minh’alma e o Verso

Eu sou o orvalho sagrado,
Que dá vida e alento às flores;
Eu sou o bálsamo amado
Que sara todas as dores.

Eu sou o pequeno cofre
Que guarda os risos da Aurora;
Perto de mim ninguém sofre,
Perto de mim ninguém chora.

Todos os dias bem cedo
Eu saio a procurar lírios,
Para enfeitar em segredo
A negra cruz dos martírios.

Vem para mim, alma triste
Que soluça de agonia;
No meu seio o Amor existe,
Eu sou filho da Poesia.


*Auta de Souza*
Em “HORTO”, Natal/RN, Fundação José Augusto, 4ª edição, 1970.
XXXII

A um poeta

Leio-te: – o pranto dos meus olhos rola:
– Do seu cabelo o delicado cheiro,
Da sua voz o timbre prazenteiro,
Tudo do livro sinto que se evola…

Todo o nosso romance: – a doce esmola
Do seu primeiro olhar, o seu primeiro
Sorriso, – neste poema verdadeiro,
Tudo ao meu triste olhar se desenrola.

Sinto animar-se todo o meu passado:
E quanto mais as páginas folheio,
Mais vejo em tudo aquele vulto amado.

Ouço junto de mim bater-lhe o seio,
E cuido vê-la, plácida, a meu lado,
Lendo comigo a página que leio.


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Via-Láctea)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.