domingo, 21 de janeiro de 2018

A última cantiga

Num dia que não se advinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-se: ‘Era a expressão
que ela ultimamente tinha.’

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça
– toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito ‘Não’.

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.

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