terça-feira, 29 de junho de 2021

ADEUS, POESIA

Senhor Jesus, o século está podre.
Onde é que vou buscar poesia?
Devo despir-me de todos os mantos,
os belos mantos que o mundo me deu.
Devo despir o manto da poesia.
Devo despir o manto mais puro.
Senhor Jesus, o século está doente,
o século está rico, o século está gordo.
Devo despir-me do que é belo,
devo despir-me da poesia,
devo despir-me do manto mais puro
que o tempo me deu, que a vida me dá.
Quero leveza no vosso caminho.
Até o que é belo me pesa nos ombros,
até a poesia acima do mundo,
acima do tempo, acima da vida,
Me esmaga na terra, me prende nas coisas.
Eu quero uma voz mais forte que o poema,
mais forte que o inferno, mais dura que a morte:
eu quero uma força mais perto de Vós.
Eu quero despir-me da voz e dos olhos,
dos outros sentidos, das outras prisões,
não posso Senhor: o tempo está doente.
Os gritos da terra, dos homens sofrendo
me prendem, me puxam – me dai Vossa mão.


*Jorge de Lima*
Em “TEMPO E ETERNIDADE POEMAS”, 
Porto Alegre, Edição da Livraria Globo, 1ª Edição, 1935.

EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
– Esta pouca cinza fria.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

 ORAÇÃO
     
Oh Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz:

Onde há ódio, faze que eu leve Amor;
Onde há ofensa, que eu leve o Perdão;
Onde há discórdia, que eu leve União;
Onde há dúvida, que eu leve a Fé;
Onde há erro, que eu leve a Verdade;
Onde há desespero, que eu leve a Esperança;
Onde há tristeza, que eu leve a Alegria;
Onde há trevas, que eu leve a Luz.

Oh Mestre, faze que eu procure menos
Ser consolado do que consolar;
Ser compreendido do que compreender;
Ser amado do que amar

Porquanto
É dando que se recebe;
É perdoando que se é perdoado;
É morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.


*São Francisco de Assis*
Em “Poemas Traduzidos – Antologia Poética”, Organização de Manuel Bandeira,
Coordenação André Seffrin, São Paulo, Editora Global, 6ª Edição, 2013.

Évora
 
                                    AO AMIGO VINDO DA LUMINOSA ITÁLIA,   
                                         A MINHA CIDADE, COMO EU SOTURNA
                                              E TRISTE...


Évora! Ruas ermas sob os céus
Cor de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as míseras vaidades!
 
Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!
 
Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!
 
...Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minh’alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina-e-moça...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS – Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

 O Pastor Amoroso

[...]

II

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.


[...]

*Alberto Caeiro*
Em “Poemas Completos de Alberto Caeiro Antologia”, São Paulo, Editora Ática, 2ª Edição, 2013.

Vaso Grego

Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia
Então e, ora repleta ora, esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois… Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e, do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa a voz de Anacreonte fosse.


*Alberto de Oliveira*
Em “Antologia Dos Poetas Brasileiros – Fase Parnasiana, Organização de Manuel Bandeira”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1996.

Carta a Ângela

Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e de sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!


*Carlos de Oliveira*
Em “Trabalho Poético”, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 2ª Edição, 1982.

 “CANÇONETA

Eu diria – são flores as pedras
em que pisam teus pés viajores...
Tuas dores – diria – são quedas.
Eu diria – nas pedras de flores.

Sobretudo no vento que passa
como brisa tu passas no tempo.
Porque voas tão cheia de graça.
Eu diria – nos braços do vento...

E diria que a estrada é tão curta,
quem sabe não seja uma estrada.
Eu diria – uma entrada noturna
do caminho de alguma alvorada...

Peregrina, são flores as pedras
na cantiga de amáveis cantores.
As veredas – diria – são breves.
E diria que as pedras são flores...


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: http://afonsoestebanez.blogspot.com/search?q=CAN%C3%87ONETA

Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)

                                                        A Carlos Heitor Cony

Artigo I
 
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
 
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
 
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
 
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
 
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
 
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
 
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
 
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
 
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
 
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
 
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
 
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
 
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
 
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
 
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.


*Thiago de Mello*
Em “Os estatutos do homem”, São Paulo, Editora Martins Fontes, 6ª Edição, 1986.

O navio negreiro


Tragédia no Mar

I

‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar – dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.

‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias,
– Constelações do líquido tesouro…

‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?…

‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas…

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo – o mar em cima – o firmamento…
E no mar e no céu – a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra – é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia…
………………………………………………….

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar – doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
– Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês – marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir...
O Francês – predestinado –
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!…

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais… inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral!… Que tétricas figuras!…
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
‘Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…’

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel…
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus…
…Adeus, ó choça do monte,
…Adeus, palmeiras da fonte!…
…Adeus, amores… adeus!…

Depois, o areal extenso…
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute… Irrisão!…

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!


*Castro Alves*
(Antônio Frederico de Castro Alves)
Em “OBRAS COMPLETAS de CASTRO ALVES”,
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 3ª Edição, 1944.

sábado, 19 de junho de 2021

 “A criança que fui chora na estrada

I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.


*Fernando Pessoa*
Em “Novas Poesias Inéditas (Direção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques
Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno)
”, Lisboa, Editora Ática, 4ª Edição, 1993.

 “O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.


*Manoel de Barros*  
Em “Poesia Completa”, Lisboa, Editora ‏Leya, 2011.

 “MEU PLANETA HABITÁVEL

Pelo menos uma vez na vida
permito que meu coração avesso
seja o único planeta habitável
da via-láctea farta de mim...

Deixo encostado o portão do meu jardim
e entro em casa pelos fundos de minha alma
para não sujar o tapete da porta de entrada
preparado para quando chegar a primavera...

Todo amor começa com a espera...
E enquanto você não chega,
faço do instante mais eterno
o mais breve momento
de você chegar...

Não importa se demorar...
A certeza me é o bastante
e você me vem em pensamento
antes mesmo de você chegar...


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com/2011_12_12_archive.html

 Sonho

Sonho que vens comigo a este passeio.
Vamos os dois andando, lentamente.
De mãos dadas sorrindo pela estrada.
Dentro em pouco, de trás dos altos montes,
A noite chegará.

Vens de branco. Tuas mãos longas e leves –
Tuas mãos de lírio – muito frias são.
Não te posso dizer nem uma só palavra.
Mas que felicidade e que doçura imensa
Há no meu coração!

Tanto tempo esperei este amado momento
De me encontrar sozinho assim, ao pé de ti –
À margem do caminho as árvores amigas
Juncam de flores e folhas os lugares
Em que pisam teus pés.

Vamos andando os dois, respirando o perfume
Que vem da natureza neste instante.
Neste instante, parece, é que nascemos –
Pois estamos os dois serenos, esquecidos
De toda a dor e de todo o mal.

A noite já desceu. Veio cheia de estrelas.
Há um silêncio bom que envolve a solidão.
Os nossos corações falam-se mudamente:
Que lindas coisas dizem nesta hora
Os nossos corações!

Hei de ser sempre teu – hás de ser sempre minha.
Nunca um momento só deixarei de te amar...
Viveremos os dois tão unidos e fortes,
Tão serenos e bons, que nem a morte
Os nossos corações separará.

Sonho que vieste a este passeio...


*Augusto Frederico Schmidt*
Em “Poesia Completa (1928-1965)”, Rio de Janeiro, Topbooks/Faculdade da Cidade, 1995.

 Cheiro de chuva
 
Deus, que saudosa manhã,
Em que ouço a melodia
Do canto da saparia
E o grito da jaçanã!
Ai! Quem conhece esse encanto
No meu sertão grato e santo
Esquecer não poderá.
O que há de bom nesta vida,
Pode passar de corrida,
A saudade deixará.
 
Vendo d’água a terra cheia,
Eu sinto a doce lembrança
De meu tempo de criança,
Dos meus açudes de areia;
A corrente do regato,
O cheiro de flor do mato
Das caatingas do sertão,
Tudo são gratas memórias
Que vêm cavar mil histórias
Plantadas no coração.
 
Nada mais belo e atraente
Do que, no rio revolto,
Pelejar de braço solto
De encontro à bruta corrente.
Lembro-me bem, no Espinharas,
Em manhãs boas e claras,
Após noite de trovão
A gente afogava as mágoas,
Cortando o peito nas águas
Como simples diversão.
 
Depois de ver-se na terra
Fartura d’água rolando,
O relâmpago faiscando,
O trovão quebrando a serra,
O gemer das cachoeiras,
Nas madrugadas fagueiras
Dá testemunho aos ateus
De que toda essa grandeza
É a própria Natureza
Cantando a glória de Deus.

 
*José Lucas de Barros*
Em  “Panorama da poesia norte-riograndense (Rômulo C. Wanderley)”,
Rio de Janeiro, Edições do Val Ltda., 1965.

 “A NOSSA CANÇÃO DE RODA

A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo
como a voz dos passarinhos
 
– mas que será que dizia?

A nossa canção de roda
era boba como a lua.
Mas a roda dispersou-se
cada qual perdeu seu par...
Agora,
nossos fantasmas meninos
talvez a cantem na lua...
Talvez que junto a algum leito
a morte a esteja a cantar
como quem nana um filhinho...
A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo:
era
uma girândola de vozes
chispando
mais lindas do que as estrelas
era uma fogueira acesa
para enganar o medo, o grande medo
que a Noite sentia
da sua própria escuridão.


*Mario Quintana*
Em “Baú de espantos”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

Capítulo 1

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia 
nas frondes da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente,
perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.
Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco
aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta 
ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora;
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança 
e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, 
filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o 
marulho das vagas: – Iracema!
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na 
sombra fugitiva da terra;
a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam
as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.
Nesse momento o lábio arranca d'alma um agro sorriso.
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares. 
Refresca o vento.
O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no horizonte.
Abre-se a imensidade dos mares, e a borrasca enverga, como o condor, 
as foscas asas sobre o abismo.
Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas,
e te poje nalguma enseada amiga.
Soprem para ti as brandas auras; e para ti jaspeie a bonança mares de leite.
Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.


*José de Alencar*
(José Martiniano de Alencar)
Em “ IRACEMA”, São Paulo, Ateliê Editorial, 1ª Edição, 2007.

Os meus pecados

Peço perdão, Senhor, se, por fraqueza,
Dentro em meu peito a flor das culpas viça.
Sei que me lançarás tua justiça
Sobre a tartárea furna em chama acesa:

Tendo-a nos braços, ardo de avareza
De tê-la; e, ao ver-lhe a forma alva e roliça,
Os meus olhos se arrastam com preguiça
Por montes e por vales de beleza!

Se o doido ciúme a cólera me açula,
Quebra a luxúria os nervos exaltados,
E a minha ação em lágrimas se anula…

Sinto inveja de Ti, somente, e, sob brados,
Mostro-a, beijando-a, numa insana gula,
Orgulhoso, Senhor, dos meus pecados!


*José Maria Goulart de Andrade*
Em “Poesias, 1900-1905, Primeira Série (Livro Bom – Livro Prohibido –
Livro Íntimo)
”, Rio de Janeiro, H. Garnier Livreiro-Editor, 1907.

 “Pior Velhice

Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso são andou na minha boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!

A Vida, que ao nascer, enfeita e touca
De alvas rosas a fronte da mulher,
Na minha fronte mística de louca
Martírios só poisou a emurchecer!

E dizem que sou nova... A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,
Ou está em nós e em nosso peito mora?!

Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
Aquela onde nem sequer existe
Lembrança de ter sido nova... outrora...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

 “Quantos anos tenho?

Que importa isso!
Tenho a idade que quero e sinto!
A idade em que posso gritar,
Sem medo daquilo que penso.
Fazer o que desejo, sem medo ao fracasso
Pois tenho a experiência dos anos vividos,
E a força, e a convicção de meus desejos.
Que importa quantos anos tenho!
Não quero pensar nisso!
Pois uns dizem que já sou velho
Enquanto outros ‘que estou no apogeu’.
Porém, não é a idade que tenho,
Nem o que as pessoas dizem,
Senão o que meu coração sente, e o meu cérebro me dita…
Tenho os anos necessários para gritar, o que penso
Fazer o que quero, reconhecer erros velhos,
Retificar caminhos e somar êxitos.
Tenho a idade em que as coisas se olham com mais calma,
Porém com o interesse de seguir crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos
Se começam, a acariciar com os dedos,
E as ilusões se convertem em esperança.
Tenho os anos em que o amor,
Às vezes, é uma louca lavareda,
Ansiosa de consumir-se no fogo
De uma paixão desejada.
E outras vezes… num remanso de paz, como o entardecer na praia
Quantos anos eu tenho?
Não necessito marcá-los com um número,
Pois os meus desejos alcançados,
As lágrimas que pelo caminho derramei,
Valem muito mais que isso.
Que importa, se tenho, cinquenta, sessenta, ou mais!
O que importa é a idade que sinto!
Tenho os anos que necessito para viver livre,
Pois levo comigo
A experiência adquirida, e a força dos meus desejos.
Quantos anos eu tenho?
Isso a quem lhe importa?
Tenho os anos suficientes, para perder o medo,
E fazer o que quero e sinto.
Que importa quantos anos tenho, ou quantos espero,
Se com os anos que tenho…
Aprendi a querer o necessário e a agarrar… apenas o bom da vida!


*Desconheço a Autoria*

domingo, 6 de junho de 2021

 “Dar-se enfim

O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah... abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!
Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser.
Mas vem uma segurança estranha: sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com esse vazio-pleno: gastá-lo.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 [...]

Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia”.

[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo GH”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

[...]

Esquenta-me com a tua adivinhação de mim, compreende-me porque eu não estou me compreendendo”.

[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo GH”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

 Linha Reta e Linha Curva

Capítulo II


[...]

Eu sei que vossa excelência preferia uma delicada mentira; mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade.

[...]

Machado de Assis
Em “Obra Completa – Contos Fluminenses, Volume II”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.

[...]

“IV

CIVILIZAÇÃO

Não há idéia mais consoladora do que esta – que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol que, agora, se esconde são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim.


[...]

*Eça de Queiroz*
(José Maria de Eça de Queirós)
Em “Contos” (publicado originalmente em 1892), Livro Digital nº 1023, São Paulo,
Iba Mendes Editor Digital, 1ª Edição, 2019.

Este Quarto

                                        Para Guilhermino César

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre,  
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.

 “Canção das duas Índias

Entre estas Índias de leste
E as Índias ocidentais
Meu Deus que distância enorme
Quantos Oceanos Pacíficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medéias
Púbis a não poder mais
Altos como a estrela d’alva
Longínquos como Oceanias
– Brancas, sobrenaturais  –
Oh inaccessíveis praias!…


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro,
Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

 “A Pátria

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! Não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!

Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

Quem com seu suor a fecunda e umedece,
vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!

Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!


*Olavo Bilac*
Em “POESIAS”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

 “Desejo
 
                                               E poi morir.
                                                                 Metastásio


Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;

Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!


*Gonçalves Dias*
Em “GONÇALVES DIAS – POESIA E PROSA COMPLETAS em um volume (Primeiros cantos)”,
Organização Alexei Bueno e Ensaio Biográfico Manuel Bandeira, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar S.A, 1ª Edição, 1998.

 “AS TRÊS ORQUÍDEAS
      
                                                         Para D. Marcos Barbosa

As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus olhos roxos.
Elas são alvas, toda pureza,
com uma leve mácula violácea para uma pureza de sonho triste, um dia.

Que dia? que dia? dói-me a sua brevidade.
Ah! não vêem o mundo. Ah! não me vêem como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o terno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno.

As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Que elas não vêem o mundo, que o mundo as visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu desaparecimento.
E aspira sobre elas a gentileza igualmente frágil,
a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha vida.

Durai, durai, flores, como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas,
que escrevo para perdurares em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de alabastro.


*Cecília Meireles*
Em “Flor de poemas”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 6ª Edição, 1984.