quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Há mais de 2.000 (dois mil) anos...

Fragmento do discurso de Cícero, cônsul de Roma, contra Catilina, recitado no Templo de Júpiter, em 8 de novembro do ano de 63 a.C., local para onde tinha sido convocado o Senado de Roma:

[...]

Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra. (Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?) Quanto zombarás de nós ainda esse teu atrevimento? Onde vai dar tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas de Paladino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar no Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos?

[...]

*Marcus Tulius Cícero*
História de Roma de Tito Lívio e a Conjura de Catilina”, de Salústio.
Em “Orações - Cícero - Texto Integral”, São Paulo, Editora Martin Claret, 2004.

Há 362 anos...

O Padre Antonio Vieira (Sermões, tomo III), da Companhia de Jesus (Lisboa, 1608-1697), conta que El-Rei D. João III encomendou a São Francisco Xavier que o informasse do estado da Índia. Diz Vieira que o que o Santo escreveu de lá, sem nomear offícios nem pessoas, foi que o verbo “rapio na Índia se conjugava por todos os modos”:

[...]

Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e mixto império, todo elle applicam despóticamente ás execuções na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque acceitam quando lhe mandam: e, para que mandem, todos os que não mandam não são acceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e, gabando as cousas desejadas aos donos dellas, por cortezia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjunctivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o d’aquelles que manejam; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quanto menos meieiros na ganancia.

Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto nem cerimônia usam da potência.

Furtam pelo modo permissivo, porque permittem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre já deixaram raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua; as segundas, os seus criados; e as terceiras, quantas para isso têm indústria e consciência.

Furtam juntamente por todos os tempos; porque do presente, que é o seu tempo, colhem quanto dá de si o triênnio; e, para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes de que vendem os perdões, e dividas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contractos, com que tudo o cahido e não cahido lhes vem a cahir nas mãos.

Finalmente, nos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus-quam perfeitos, e quaesquer outros; porque, furtam, furtaram furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em summa, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: - a furtar, para furtar. E quando elles têm conjugado assim toda a voz activa, e as miseráveis províncias supportado toda a passiva, elles, como se tivessem feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos; e ellas ficam roubadas e consumidas.


[...]

*Padre António Vieira*

Trecho do “SERMÃO DO BOM LADRÃO VIII”, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1655.
Em “SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO E OUTROS TEXTOS”, Lisboa, Oficina do Livro, 2008, págs. 144/146.

Há 85 anos...

Maioria débil é sempre vizinha da corrupção; primeiro, não tomando resolutamente a iniciativa de realizar as suas opiniões e compromissos; depois, agradando aos seus, para que não a abandonem, e atraindo os outros, para que a venham engrossar. Ficam, também, sem objeto, em presença de uma numerosa maioria, essas imorais coligações, que a intriga parlamentar engendra para derrubar situações, só com o fim de satisfazer à fátua vaidade de seis ou sete cobiçosos de pastas ministeriais. Essas maiorias artificiais, provenientes de coligações, são a lepra dos governos representativos; nos parlamentares, geram gabinetes efêmeros; nos presidenciais, situações irritantes, de que não raro, como remate do conflito entre o Legislativo e o Executivo, surgem os golpes de Estado. O seu fruto é sempre a instabilidade do poder público e a perturbação do progresso.

*Joaquim Francisco de  Assis Brasil*
Em “COLEÇÃO CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS” (Aliomar Baleeiro e Barbosa Lima Sobrinho, 
Volume V, 1946, pág. 31), Brasília, Edição do Senado Federal, 
Subsecretaria de Edições Técnicas, 3ª Edição, 2012.

Em 17 de dezembro de 1914...

Trecho do discurso “Requerimento de Informações sobre o Caso do Satélite – II”.

[...]

E nessa destruição geral das nossas instituições, a maior de todas as ruínas, senhores, é a ruína da justiça, colaborada pela ação dos homens públicos, pelo interesse dos nossos partidos, pela influência constante dos nossos governos. E nesse esboroamento da justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta de penalidade aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta um crime que envolva um nome poderoso, apontado, indicado, que todos conhecem, mas que ninguém tem coragem de apontá-lo à opinião pública, de modo que a justiça possa exercer a sua ação saneadora e benfazeja.

*Rui Barbosa de Oliveira*
 

Em “Obras Completas de Rui Barbosa
, Volume V, 41, t. 3, 1914. pág. 87.
Extraí daqui:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=1959
Trecho do artigo “O Manifesto Inaugural”.
 
[...]

 “a esperança nos juízes é a última esperança. Ela estará perdida, quando os juízes já nos não escudarem dos golpes do Governo. E, logo que o povo a perder, cada um de nós será legitimamente executor das próprias sentenças, e a anarquia zombará da vontade dos presidentes como o vento do argueiro que arrebata.

*Rui Barbosa de Oliveira*

 Em “Obras Completas de Rui Barbosa
, Volume V, 25, t. 2, 1898, pág. 130.
Extraí daqui:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=435

Em 17 de dezembro de 1914...

Trecho proferido ao defender o seu “Requerimento de Informações sobre o Caso do Satélite – II”.

 [...]

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.

[...]

*Rui Barbosa de Oliveira*
 

Em “Obras Completas de Rui Barbosa, Volume V, 41, t. 3, 1914, pág. 86.
Extrai daqui:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=883

Há 128 anos...


Excerto do artigo “Pobre Ensino Público”.

Os medíocres, as nulidades altanadas, que de ordinário ocupam, entre nós, os altos postos do governo, são incapazes de sentir a vileza desses mercados, de onde se proscreve calculadamente a inteligência, o saber, a probidade, a benefício da relaxação, da ignorância, da estupidez. Falta alma a esses filhos da fortuna, para experimentarem a santa indignação da justiça ferida, quando uma criatura nula da politicagem usurpa os cargos públicos aos homens de bem e aos homens de talento. Dir-se-ia até que, nesses triunfos da força selvagem contra o mérito, esses heróis da incapacidade têm os seus grandes dias de vanglória na ostentação desses prodígios da sua autoridade brutal.

*Rui Barbosa de Oliveira*
Em “Obras Completas de Rui Barbosa
, Volume V, 16, t. 6, 1889, pág. 106.
Extraí daqui:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=2582

Foi dito no Brasil, em 08 de março de 1919...

Fragmento da conferência “Às Classes Conservadoras”, proferida na 
Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 08 de março de 1919.

Mentira toda ela. Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde, segundo o Padre Vieira, que não chegou a conhecer o Dr. Urbano dos Santos, o próprio sol mentia ao Maranhão, e diríeis que hoje mente ao Brasil inteiro.
Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentiras nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos.
Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira de caudilhos e apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira.
Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo.
Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindoiros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso.

*Rui Barbosa de Oliveira*

Em “Obras Completas de Rui Barbosa
, Volume V, 46, t. 1, 1919, pág. 31.
Extraí daqui: http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=1390

domingo, 22 de outubro de 2017

Há 150 anos...

A única crítica é a gargalhada

[...]

A única crítica é a gargalhada! Porque enfim, nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem uma idéia, nem um sentimento, nem uma crítica; nem é o desdém, nem a indignação; nem julga, nem repele, nem pensa; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma! E no entanto é o único inventário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Fala? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre a política, aqui, ou pensando, ou criando, ou liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a, como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, cruel, implacável – a gargalhada! 
 
[...]
  
o governo exorbita? Oh que pilhéria! É terrível, tirânico? Santo Deus, que estamos a rir!

Oh política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, educa, ensina, discute, oprime, – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça!


[...]
   
*José Maria Eça de Queiroz*
Excerto do artigo “Uma Campanha Alegre”.
Em “As Farpas – Crônica mensal da política, das letras e dos costumes (Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão), As Farpas originais de Eça Queiroz, Coordenação de Maria Filomena Mónica”, Principia - Publicações Universitárias e Científicas, Cascais/Portugal, 3ª Edição, 2004.
Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
–  ‘Passei o dia à toa, à toa!’

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...


*Manuel Bandeira*
Em “Libertinagem & Estrela da manhã”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2000.
Máquina do Mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.


*Rómulo de Carvalho (António Gedeão)*
Em “Poesias Completas”, Lisboa, Portugália Editora, 9ª edição, 1983.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Soneto XIII

Pastor já fui desse rebanho alado,
Que pelos céus caminha, pensativo,
A ruminar a grama azul do prado
E a desmanchar-se em pensamento vivo.

Pastor já fui de olhar perdido e calmo,
Guardando as reses pelo campo etéreo,
Entoei sobre a campina cada salmo
De um livro que perdi sobre o mistério.

Já fui pastor fora de certo espaço,
Das loucas dimensões em que me banho,
Não sei se é no futuro em que me abraço

Ou no passado desse meu rebanho!
Pastor já fui, hoje arrebanho a mágoa
Do meu rebanho a desfazer-se em água.


*Paulo Bomfim*
Em “Livro dos sonetos (Transfiguração)”, São Paulo, Amaral Gurgel Editorial, 1ª Edição, 2006.
Soneto I

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes…
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.


*Paulo Bomfim*
 

Em “Livro dos sonetos (Transfiguração)”, São Paulo, Amaral Gurgel Editorial, 1ª Edição, 2006.
Extraí daqui:
https://www.paulobomfim.com/literatura/sonetos/99-soneto-i-transfigura%C3%A7%C3%A3o-%E2%80%93-1951.html
É o vento

É o vento que vem uivando
pelas frinchas do infinito
é o vento que vem gemendo
na espinha do plenilúnio
é o vento que vem rolando
como um cascalho de treva.

É o vento que vem quebrando
as vidraças do silêncio
é o vento que vem abrindo
as cicatrizes da véspera
é o vento que vem pulsando
nas veias murchas do tempo.

É o vento que vem mordendo
a carne tenra das nuvens
é o vento que vem regendo
a sinfonia das águas
é o vento que vem varrendo
a nostalgia dos túmulos.

É o vento que vem trazendo
teu sorriso embalsamado
é o vento que vem despindo
a salsugem de teus seios
é o vento que vem moldando
tua gótica nudez.

É o vento que vem brincando
de roda com minha infância
é o vento que vem tangendo
meus pensamentos sem rumo
é o vento que vem traçando
o mapa de minha face.

É o vento que vem roendo
o pergaminho das horas
que monótonas gotejam
sobre as escarpas herméticas
do abismo turvo insondável
que me separa de mim.


*Ivan Junqueira*
Em “Poemas Reunidos”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1999.

domingo, 15 de outubro de 2017

O vento e eu

O vento morria de tédio
porque apenas gostava de cantar
mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
cada vez mais vazia...

Tentei então compor-lhe uma canção
tão comprida como a minha vida
e com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
e fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
Mas o vento, por isso,
me julga agora como ele...
E me dedica um amor solidário, profundo!


*Mario Quintana*
Em “VELÓRIO SEM DEFUNTO”, Rio Grande do Sul, Editora Globo, 1ª Edição, 2009.

Décimas

Meu amado Redentor

                                                         Acto de contrição, depois de se confessar.

Meu amado Redentor,
Jesus Cristo soberano
Divino Homem, Deus Humano,
da terra, Deus criador:
por seres, quem sois, Senhor,
e porque muito vos quero,
me pesa com rigor fero
de vos haver ofendido,
do que agora arrependido,
meu Deus, o perdão espero.
 
Bem sei, meu Pai soberano,
que na obstinação sobejo
corri sem temor, nem pejo
pelos caminhos do engano:
bem sei também, que o meu dano
muito vos tem agravado,
porém venho confiado
em vossa graça, e amor,
que também sei, é maior,
Senhor, do que meu pecado.
 
Bem não vos amo, confesso,
várias juras cometi,
missa inteira nunca ouvi,
a meus Pais não obedeço:
matar alguns apeteço,
luxurioso pequei,
bens do próximo furtei,
falsos levantei às claras,
desejei mulheres raras,
cousas de outrem cobicei.

Para lavar culpas tantas,
e ofensas, Senhor, tão feias
são fortes de graça cheias
essas chagas sacrossantas:
sobre mim venham as santas
correntes do vosso lado;
para que fique lavado,
e limpo nessas correntes,
comunica-me as enchentes
da graça, meu Deus amado.
 
Assim, meu Pai, há de ser,
e proponho, meu Senhor,
com vossa graça, e amor
nunca mais vos ofender:
prometo permanecer
em vosso amor firmemente,
para que mais nunca intente
ofensas contra meu Deus,
a quem os sentidos meus
ofereço humildemente.
 
Humilhado desta sorte,
meu Deus do meu coração,
vos peço ansioso o perdão
por vossa paixão, e morte:
à minha alma em ânsia forte
perdão vossas chagas dêem,
e com o perdão também
espero o prêmio dos Céus,
não pelos méritos meus,
mas do vosso sangue: amém.


*Gregório de Matos Guerra*
Em “Obra poética”, Rio de Janeiro, Editora Record, 2ª Edição, 1990.
– Obras de Gregório de Matos, Rio de Janeiro, Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1923-1933, 
6 Volumes (Sacra, I, 1929; Lírica, II, 1923; Graciosa, III, 1930; Satírica, IV e V, 1930; Última, VI, 1933).
Sinfonias do Ocaso     
                                                                 
Musselinosas, como brumas diurnas
Descem do ocaso as sombras harmoniosas,
Sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
Os céus resplendem de sidéreas rosas
da Lua e das Estrelas majestosas
Iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos
A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúricos mórbidos vaporam...
E como que no Azul plangem e choram
Cítaras, harpas, bandolins e violinos...


*Cruz e Sousa*
Em “Broquéis - Cruz e Sousa, OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro,
Editora José Aguilar S.A., 1ª Edição, 1961.
Sinfonia

Meu coração, na incerta adolescência, outrora,
Delirava e sorria aos raios matutinos,
Num prelúdio incolor, como o alegro da aurora,
Em sistros e clarins, em pífanos e sinos.

Meu coração, depois, pela estrada sonora
Colhia a cada passo os amores e os hinos,
E ia de beijo a beijo, em lasciva demora,
Num voluptuoso adágio em harpas e violinos.

Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, arde
Em flautas e oboés, na inquietação da tarde,
E entre esperanças foge e entre saudades erra...

E, heróico, estalará num final, nos clamores
Dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores,
Para glorificar tudo que amou na terra!


*Olavo Bilac*
Em “Poesias – Olavo Bilac”, São Paulo, Martins Editora Livraria Ltda., 1ª Edição, 2001.
Diálogo

Minhas palavras são a metade de um diálogo
obscuro continuando através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos.

Olhos que choraram. Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa…

E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Eu sou a Terra

Terra, minha primeira e grande Mãe.
Amo-te. Sou tua, pois que fui feita do teu barro imundo.
Meus pés se apoiam na tua firmeza,
enquanto meu espírito procura Aquele que me
criou um dia, para tudo quanto ignoro.
Sei que vivo em ti, colada ao teu ventre fecundo.
Sei que vivo de tudo que me vem de ti,
através do esforço, do trabalho e da luta.
Sinto-me integrada em todas as belezas simples e
Incompletas que provém de ti.
Minha biologia é estreitamente da terra e, para a terra.
Terra, minha grande Mater, generosa e fecunda!
De conforto é para o meu cansaço disfarçado de todos,
o pensamento de que em breve abrirá o teu seio,
a cava estreita do meu repouso.


*Cora Coralina”
Em “Cora Coralina Raízes de Aninha”, São Paulo, Editora Ideias & Letras, 6ª Edição, 2009.

domingo, 1 de outubro de 2017

Talvez o vento saiba

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.


*Ivan Junqueira*
Em “Poemas Reunidos”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1999.
SONETO VIII (Lágrimas de Amor: Rubi e Prata)

Corrente, que do peito desatada
Sois por dois belos olhos despedida;
E por carmim correndo despedida
Deixais o ser, levais a cor mudada.

Não sei, quando cais precipitada,
Às flores, que regais, tão parecida,
Se sois neves por rosa derretida,
Ou se a rosa por neve desfolhada.

Essa enchente gentil de prata fina,
Que de rubi por conchas se dilata,
Faz troca tão diversa, e peregrina,

Que no objeto, que mostra, ou que retrata,
Mesclando a cor purpúrea à cristalina,
Não sei, quando é rubi, ou quando é prata.


*Gregório de Matos Guerra*
Em “Obra poética”, Rio de Janeiro, Editora Record, 2ª Edição, 1990.
– Obras de Gregório de Matos, Rio de Janeiro, Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1923-1933, 
6 Volumes (Sacra, I, 1929; Lírica, II, 1923; Graciosa, III, 1930; Satírica, IV e V, 1930; Última, VI, 1933).
SONETO VII (Lágrimas de Amor: Fogo e Neve)

Ardor em firme coração nascido!
Pranto por belos olhos derramado!
Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido!

Tu, que em um peito abrasas escondido,
Tu, que em um rosto corres desatado,
Quando fogo em cristais aprisionado,
Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente?
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai! Que andou Amor em ti prudente.

Pois para temperar a tirania,
Como quis, que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu, parecesse a chama fria.


*Gregório de Matos Guerra*
Em
Obra poética, Rio de Janeiro, Editora Record, 2ª Edição, 1990.
– Obras de Gregório de Matos, Rio de Janeiro, Publicações da Academia 
Brasileira de Letras, 1923-1933, 6 Volumes 
(Sacra, I, 1929; Lírica, II, 1923; Graciosa, III, 1930; Satírica, IV e V, 1930; Última, VI, 1933).
Meu Brasil atrapalhado 

A gente fala, protesta,
Nesta terra nada presta.
O povo é lerdo, indolente...
É a farra, ninguém trabalha,
A peste, a pátria amortalha,
Sob o sol rude, inclemente...

A lei é mito, pilhéria...
Ninguém liga a coisa séria
Não há remédio, é da raça.
A vida se desbarata,
O pinho, a cuíca, a mulata,
O amarelão, a cachaça...

A gente murmura, fala,
Velhos defeitos propala,
Em língua rude e vil.
É a pior terra do mundo.
Mas no fundo, no fundo,
Quanto amor pelo Brasil!

Tudo da boca pra fora!
Porque cá dentro ele mora
Cá dentro é que gente o sente.
Meu Brasil atrapalhado,
Meu Brasil confuso e errado
Você vê que o povo mente.

Você vê que a gente grita,
Mas vê também que é infinita
Esta paixão por você...
Se a Bandeira levanta,
Lá vem o nó na garganta,
E você sabe por quê...

Você sabe e não se importa,
A nossa injúria suporta
E o nosso labéu também...
Deixe que xingue, que bata.
A gente fere e maltrata,
Quase sempre, a quem quer bem.

Meu Brasil, aqui baixinho,
Ouça, sou todo carinho,
e a minha alma você vê...
Qualquer perigo que corra,
Se for preciso que eu morra,
Eu morrerei por você...


*Djalma Andrade*
Extraí daqui:
http://www.ternuma.com.br/index.php/biblioteca/264-exaltacao-a-patria-brasileira
Brasil dos meus Avós

Brasil dos meus avós, acorda!
Vem trazer-nos o ardor que rugia e cantava
No peito de teus filhos de outras eras
De Caxias, Osório, Sampaio e Tiradentes.
Dos heróis de Itororó e Tuiuti,
Que rolaram no pó, rubros de sangue,
Com o coração e o pensamento em ti!

Brasil dos meus avós,
Ressurge, dentro de nós, nesta hora extrema!
Inspira-nos um cântico marcial e romântico
Que seja como a nova Marselhesa
Da Pátria de Peri e de Iracema.
Faze que cada brasileiro, neste instante,
Lembre o velho cocar, o vetusto diadema
A tremular, medievalescamente,
Na fronte heril dos teus guerreiros selvagens
Guerreiros mais humanos e sensíveis do que os homens maus do Velho Mundo
Que, irrompendo do céu ou do fundo do mar,
Matam mulheres, velhos, paralíticos,
Tão só pelo desejo infame de matar...

Brasil dos meus avós
Dá-nos aquela mesma galhardia
Dos teus veros heróis das matas virgens,
Que marcavam a hora dos recontros bélicos
À plena luz do dia
E cumpriam a palavra dada
Como coisa sagrada
Sem dissimulação nem covardia...

Brasil dos meus avós
Eu bem o sinto!
Estás dentro de nós, Brasil de meus avós!
Sincero, puro, másculo, viril
Tu que és o Brasil de hoje e de sempre,
O imortal Brasil!


*Filgueiras Lima*
 

Extraí daqui: http://www.ternuma.com.br/index.php/biblioteca/264-exaltacao-a-patria-brasileira
Ouvir estrelas

Ora, direis, ouvir estrelas! Vejo
que estás beirando a maluquice extrema.
No entanto o certo é o que não perco o ensejo
De ouvi-las nos programas de cinema.

Não perco fita; e dir-vos-ei sem pejo
que mais eu gozo se escabroso é o tema.
Uma boca de estrelas dando beijo
é, meu amigo, assunto p’ra um poema.

Direis agora: Mas, enfim, meu caro,
As estrelas que dizem? Que sentido
Têm suas frases de sabor tão raro?

Amigo, aprende inglês para entendê-las,
Pois só sabendo inglês se tem ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.


*Bastos Tigre*
Em “Antologia poética de Bastos Tigre” (2 Volumes),
Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves/INL, 1982.
Anoitecer

                                          A Adelino Fontoura

Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de ouro e de púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia.

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.


*Raimundo Correia*
Em “Poesias completas de Raimundo Correia”, Volume 1, São Paulo, 
Companhia Editora Nacional, 1948, pág. 120.
Mal Secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!


*Raimundo Correia*
Em “Poesias Completas (Itaú Cultural - Panorama Poesia e Crônica)”, São Paulo,
Editora Nacional, Volume 1, pág. 16, 1948.
A máscara

Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.

No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.

Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.

E entre a mágoa que masc’ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira,
41ª Edição, 1997.
A Esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro ̵ avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira, 41ª Edição, 1997.