domingo, 28 de junho de 2015

MEUS ANJOS FALAM

Quando meu anjo te fala
teu anjo fica em silêncio.
Quando meu anjo se cala
teu anjo fala o que penso.

Quando teu anjo me fala
meu anjo fica em silêncio.
Quando teu anjo se cala
meu anjo fala o que penso.

Tudo o que teu anjo fala
meu anjo fala em silêncio.
Cada anjo então se cala
para falar o que penso.

Tudo o que meu anjo fala
teu anjo fala em silêncio.
O anjo que então se cala
é o que fala o que penso.

Anjos são dois dialetos
de uma única linguagem
quando falam dos afetos
no silêncio da mensagem.

Eles são esses dois lados
das canções e seu cantor
que juntos falam calados:
Como te amo, meu amor!...


*Afonso Estebanez*

Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2008_10_26_archive.html

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Eu vi uma rosa

Eu vi uma rosa
− Uma rosa branca −
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.

A graça essencial,
Mistério inefável
− Sobrenatural −
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
”    

*Manuel Bandeira*
Em “Estrêla da vida inteira − poesias reunidas”, Rio de Janeiro, 
Editora José Olympio, 15ª Edição, 1988.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

PÁSSAROS NOTURNOS – 1

Há um pássaro noturno
a vasta noite e o marulho
escondidos nos escuros
labirintos do luar...

Há os muros os penedos
e aquele setembro negro
o pavor desses rochedos
além dos medos do mar...

Há o oceano e essa vaga memória do tempo.
Há navios ao relento há náufragos e o vento
debruçados no crepúsculo
onde a luz foi repousar...

E há um pássaro noturno
que não tem onde pousar...


*Afonso Estebanez*
 

Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2008_11_08_archive.html
Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências de vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: ‘Vem comigo!’, e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.


*Nuno Júdice*
Em “Poesia Reunida (1967-2000)”, Lisboa, Editora Dom Quixote, 1ª Edição, 2000.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

“Lembro-me bem do seu olhar

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto…
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.”

*
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “Novas Poesias Inéditas”, Lisboa, Editora Ática, 4ª edição, 1993.
O MOINHO DO TEMPO

Pé de meia sempre vazio.
Vazios os armários
Seus mistérios desmentidos.

Fechaduras arrebentadas, arrancadas.
Velhas gavetas de antigas
mesas de austeras salas vazias.
Os lavrados que guardavam,
Vendidos, empenhados,
sem retorno.
As velhas gavetas
guardam sempre um refugo de coisas
que se agarram às casas velhas e acabam mesmo
nos monturos.

As velhas gavetas
têm um cheiro nojento de barata.

As arcas desmanteladas.
Os baús amassados.
Os abastos resumidos.
A fornalha apagada.
Economizado o pau de lenha.
Pelos cantos as aranhas
diligentes, pacientes, emaranham teias.

E a casa grande se apagando,
caindo lance a lance, seus muros de taipa.
E um gato miau, fedendo pelos cantos.

E a gente se apegava aos santos,
tão distantes...

Rezava, Rezava, pedia, prometia...
O tempo foi passando,
os santos, cansados, enfastiados
economizando os milagres do passado.
No fim os compradores de antiguidades
acabaram mesmo levando os oratórios
e os santos, que fossem de madeira,
dando lugar à TV, ao Rádio RCA Victor de sete faixas.

A gente era moça do passado.
Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada dos mais velhos,
em autoridade, experiência, alto saber.
‘Moça para casar não precisa namorar,
o que for seu virá’.
Ai, meu Deus! E como custava chegar...
Virá, Virá... Virá, Virá... quando?
E o tempo passando e o moinho dos anos moendo,
e a roda-da-vida rodando... Virá-virá!
A gente ali, na estaca, amarrada, consumida
de Maria Borralheira, sem madrinha-fada,
sem sapatinho perdido,
sem arauto de príncipe-rei, a procurar
pelos reinos da cidade de Goiás
o pezinho faceiro do sapatinho de cristal,
caído na correria da volta.

A igreja, refúgio e confessionário antigo.
O frade, velho e cansado. Frei Germano, piedoso,
Exortando paciente e severo. ‘Minha filha, a virgindade
é um estado agradável aos olhos de Deus. Olha as
santas virgens,
Santa Terezinha de Jesus, Santa Clara, Santa Cecília,
Santa Maria Mãe de Jesus. Deus dá uma proteção
especial às virgens.
Reza três ave-marias e uma salve rainha a Nossa
Senhora e vai comungar’.

A gente saía confortada, ouvia a missa,
cumpria a penitência e comungava humildemente,
ajoelhada,
véu na cabeça em modéstia reforçada.

Depois, depois, a solidão de solteira, o sonho honesto
De um noivo,
o desejo de filhos,
presença de homem, casa da gente mesma, dona ser.
Um lar.
Estado de casada.

A pobreza em toda volta, a luta obscura
de todas as mulheres goianas. No pilão, no tacho,
fundindo velas de sebo, no ferro de brasa de engomar.
Aceso sempre o forno de barro.
As quitandas de salvação, carreando pelos taboleiros
os abençoados vinténs, tão valedores, indispensáveis.
Eram as costuras trabalhadas,
os desfiados, os crivos pacientes.
A reforma do velho, o aproveitamento dos retalhos.
Os bordados caprichados, os remendos instituídos,
os cerzidos pacientes...
Tudo economizado, aproveitado.
Tudo ajudava a pobreza daquela classe média, coagida,
forçada a manter as aparências de decência, compostura,
preconceito, sustentáculos da pobreza disfarçada.
Classe média do após treze de maio.
Geração ponte, eu fui, posso contar.

O poço d’água, a maravilhosa servidão da casa.
Toda a família na dependência do poço, da corda, do
Balde.
A água lá no fundo, cisterna, também chamada.
Um dia, dia incerto e já previsto o desastre, o transtorno.
Todos atingidos, impressionados, participantes,
da porta da rua ao fundo do quintal. Arrebentou a
corda do poço...
gasta e cansada, exausta da sua resistência.
Corda vigente, corda de arrocho, corda de enforcar,
lá se foi com seu pedaço, agarrada ao balde, descansar
no fundo profundo do poço.

A casa toda assanhada, informa: arrebentou a corda do poço.
Vamos tentar a retirada de salvação geral.
Todos participantes, impressionados, coniventes na salvação
do balde, o resto da corda.
A vizinha de lado comparece por cima do muro, oferece
seu balde, dá palpites, solidária.

Uma longa vara, um gancho na ponta a vasculhar
o fundo escuro, em passeio lento e paciente. Assistência,
a torcida geral. Afinal, ponta e gancho enlaçam o que desceu
e sobe triunfante. Faz-se a emenda com perícia,
gente antiga, afeita a essa e outras emergências.
Cada qual aos seus interesses e, volta a casa
à rotina da vida do passado.

Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado, tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do poço da imaginação...

Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
conter e reprimir as jovens, dar-lhes esperanças,
ensinar-lhes a paciência, a vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha
parda de pobreza e limitação.

Hoje sobrará para todos mil cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém da infância. Bem por isso
mandei fazer um broche de um vintém de cobre
e preguei no meu vestido do lado do coração.

Sentir a presença daquele vintém
pobre da minha infância, tão procurado, tão escasso!...
Sentir a metade daquela bolacha que repartia comigo
o carinho da minha bisavó, na sua pobreza mansa.
Estender de novo minhas pequenas mãos de criança
para as quitandas, broinhas, brevidades
e biscoitos que me dava tia Nhorita,
ela, se findando numa velhice tão bonita
como outra igual não vi.
Seu sorriso de Mona Lisa,
seu mistério de Gioconda.
Ter nos meus braços aquela boneca de loiça vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite, sua flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias, loira, olhos azuis e que dormia...
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca, sonhava e ela sempre ali, inacessível,
na estática da vitrine envidraçada da loja de ‘Seu’ Cincinato.

Voltar à infância... Voltar ao paraíso perdido
de uma infância pobre que pedia tão pouco!
Menino Jesus, sorridente no oratório.
Uma bolinha azul nas mãos poderosas sustentando o mundo.

Ele, tão pequenino e frágil.
Tantos santinhos pobres me protegendo,
tantas velhas me ensinando as regras da vida...
Eu era cega, ceguinha, peticega, sem nada ver.
Mouca, surda,
surdinha, sem nada ouvir...
Chegar hoje a evocação dolorida e rude...

Meu vintém de cobre! Arrebentar todas as amarras
e contenções representadas.
Meu vintém, está comigo nestas páginas de escrever.


*Cora Coralina*
Em “Coleção Melhores poemas/Cora Coralina”, São Paulo, Editora Global, 
3ª Edição Revista e Ampliada, 2008.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

“Não sei qual é a minha idade: muda de minuto em minuto”...

Soneto de aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece…
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.


*Vinicius de Moraes*

 Em “Poesia Completa e Prosa - volume único”, Rio de Janeiro, 
Editora  Nova Aguilar S/A, 4ª Edição, 2004.