domingo, 26 de novembro de 2017

Serena

Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavi-
dade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levi-
tação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.


*Henriqueta Lisboa*
Em “Azul Profundo”, Belo Horizonte, Ariel Junior Editor, 1ª Edição, 1956.
Essa música

Essa música que retorna
como perfume de uma rosa,
essa música que se entorna
de uma ânfora por cujas bordas
escorre ainda o mel de outrora,
essa música insidiosa
numa antiquíssima harpa eólica:
seria o vento em suas cordas?
Seria Orfeu vindo das forjas
do inferno a que baixou, apóstata,
em busca da filha de Apolo,
Eurídice, a esposa morta
por quem até hoje chora?      
Não é nada enfim. Tudo dorme.
Há, sim, alguém que à noite acorda
e vê-se em ruínas, sem memória
de um tempo que fugiu, mas volta
nessa música que se entorna,
e vai e vem, e vem e torna,
nessa música que retorna
como o perfume de uma rosa.


*Ivan Junqueira*
Em “ESSA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2014.
Exortação ao meu anjo

Quando eu me deixar cair
No sonho de adoecer para poder dormir,
Fere-me com a tua lança!
Reaviva em mim a dor, fonte de esperança.

Quando a verdade, que é nua,
Me cegar como um sol, e eu me voltar para onde há lua,
E procurar jardins convencionais e plácidos,
Queima-me com os teus olhos ácidos!

Quando me for mais fácil a verdade do que ter
Um papel de actor qualquer,
Como aos que assim se recreiam,
Faz-me exibir-me bobo ante os que aplaudem ou pateiam.

Quando eu julgar, falando, dizer tudo,
Faz ante mim sorrir teu lábio mudo!
Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!

Quando eu tiver medo do Medo
E acender fósforos nos cantos rumorosos de segredo,
Arrasta-me pelos cabelos
Para entre os pesadelos!

Quando, a meio da noite e da ansiedade,
Eu me rojar por terra e te pedir piedade
Não me apareças nem me fales!
Deixa-me só com o meu cálix.

Quando eu te falsificar,
E alugar anjos de serrim para em seus braços me embalar,
Derrete o chumbo das casas:
Leva-me no tufão das tuas asas!

Quando eu, enfim, não puder mais,
Por tuas próprias mãos belíssimas e leais,
E sem caixões nem mortalhas,
Enterra-me na terra das batalhas.

Quando, depois de morto, a glória
Me levantar o seu jazigo e celebrar minha vitória,
Desvenda os alçapões dos meus escritos
E arranca à terra que me esconde os mais secretos dos meus gritos!


*José Régio*
Em “As Encruzilhadas de Deus”, Lisboa, Editorial INQUÉRITO Limitada, 2ª Edição, 1946.
A hora cinzenta

Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas:
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distâncias desoladas...

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia...

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

Os sentidos se esfumam, a alma é essência
E entre fugas de sombras transcendentes,
O Pensamento se volatiliza...


*Raul de Leoni*

Em “Luz Mediterrânea”, Rio de Janeiro, Editora Viana & Mosley, 1ª Edição, 2002.
Névoas

Nas horas tardias que a noite desmaia,
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
− Um corpo de lada, − serena dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve − puríssima e nua −
Um raio de lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes − cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas;
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas suas espáduas, dos astros dormentes,
− Tão frio − não sentes o pranto filtrar?
E as asas de prata do gênio das noites,
Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!..
Os astros − sem alma − se cansam de olhar-te,
Não podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam − e as névoas tremiam, −
e os gênios corriam − no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa, das nuvens da Ilíria
− Brilhante Valquíria − das brumas do norte,
Não ouves ao menos do barão os clamores,
Envolta em vapores, − mais fria que a morte!

Oh! vem! vem, minh’alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
 Eu quero aquecê-los no peito incendido,
− Contar-te ao ouvido paixão delirante!..

Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias,
− Nas horas tardias que a noite desmaia.

− E as brisas d’aurora ligeiras corriam,
No leito batiam da fada divina;
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem
E a pálida imagem desfez-se em − neblina!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde, Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)”, 
Rio de Janeiro, Editora Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.
A Cruz

Estrelas
Singelas,
Luzeiros
Fagueiros,
Esplêndidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares, − florestas vivazes!
Montanhas audazes que o céu topetais!
Abismos
Profundos!
Cavernas
Eternas!
Extensos,
Imensos
Espaços
Azuis!
Altares e tronos,
Humildes e sábios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
Só ela nos mostra da glória o caminho,
Só ela nos fala das leis de − Jesus!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde, Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)”, 
Rio de Janeiro, Editora Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.
O Sabiá

Oh! meu sabiá formoso,
sonoroso,
já desponta a madrugada,
desabrocha a linda rosa
donairosa,
sobre a campina orvalhada.

Manso o regato murmura
na verdura
descrevendo giros mil,
some-se a estrela brilhante,
vacilante
no horizonte cor de anil.

Ergue-se, oh meu passarinho,
de teu ninho,
vem gozar da madrugada,
modula teu terno canto,
doce encanto
de minh'alma amargurada.

Vem junto à minha janela,
sobre a bela
verdejante laranjeira,
beber o eflúvio das flores,
teus amores,
nas asas de aura fagueira.

Desprende a voz adorada,
namorada,
Poeta da solidão,
ah! vem lançar com encanto
mais um canto
no livro da criação!

Oh! meu Sabiá formoso,
sonoroso,
já desponta a madrugada;
deixa teu ninho altaneiro,
vem ligeiro
saudar a luz d`alvorada.


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde, 
Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)”, 
Rio de Janeiro, Editora Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.
Cântico do calvário

                                                    À memória de meu Filho
                                                 morto a 11 de dezembro de 1863


Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto,
Pomba, – varou-te a flecha do destino!
Astro, – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, – caíste! – Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, – gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! – Sede benditas!
Oh! filho de minh'alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pausarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo!
Pouco tenho de andar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! o lago escuro
Onde o clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!...

Oh! quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa n'água o lenha do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte?
Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel!... E tudo embalde!
A vida parecia ardente e doida
Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n'alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave:
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! Frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor... ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!
Mas, ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonias! – O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, – nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, – mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doudo sonho!... Uma estação passou-se
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!...

Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, – sinto o aroma
Do incenso das igrejas, – ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!... E choro embalde.

Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma estrela,
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh'alma.


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde, 
Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)”, 
Rio de Janeiro, Editora Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.
Tua voz

A tua voz vem d´alma, fresca e pura
Como um bafo de infante adormecido:
Se cantas – dás um raio de ventura,
Se choras, tudo chora ao teu gemido!

Quando me deixas, longo tempo ainda
Ouço-te a fala, música divina,
Que sai sorrindo dessa boca linda,
Harpa mimosa que só Deus afina.

A tua voz me alegra e me embriaga:
Assim a brisa, de perfumes rica,
Sussurra nos rosais, suspira e afaga...
Passa, é verdade; mas o aroma fica!


*Casimiro de Abreu*
Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

domingo, 19 de novembro de 2017

Saudade
 
 Saudade é um pouco como fome.
Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda
que a presença é pouco:
quer-se absorver a outra pessoa toda.
Essa vontade de um ser o outro para uma
unificação inteira
é um dos sentimentos
mais urgentes que se tem na vida.


*Clarice Lispector*
Extraído de “A descoberta do mundo”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.
Canção da vez primeira

Guardei-me para ti como um segredo
que eu mesma não desvendei:
há notas na minha viola
que não toquei,
há praias na minha vida que nem andei.

É preciso que me tomes
além do riso e do olhar,
naquilo que não conheço
e adivinhei;
é preciso que me cantes
a canção do que serei
e me cries com teu gesto
que nem sonhei.


*Lya Luft*
Em “Secreta Mirada e Outros Poemas”, Rio de Janeiro, Editora Record, 2005.
O velho do espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus... Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
‘O que fizeste de mim?!’
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...


*Mario Quintana*
Em “Mario Quintana - Poesia Completa”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, Volume Único, 1ª Edição, 2005.
Dai-me algumas palavras...

Dai-me algumas palavras,
– porém, somente algumas –
que às vezes apetece,
pelos jardins da areia,
colher flores de espuma.

Deixai, deixai, secreto,
o silêncio que dorme
às portas da minha alma,
guardando os labirintos
e as esfinges enormes.

(O silêncio caído
com seus firmes oceanos,
– onde não há mais nada
dos litorais do mundo
nem do périplo humano!)


*Cecília Meireles*
Em “CANÇÕES”, Rio de Janeiro, Editora Livros de Portugal, 1ª edição, 1956.
As mãos de meu pai

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor da terra
– como são belas as tuas mãos –
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
da nobre cólera dos justos...

Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...

Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos.

E é, ainda, a vida
que transfigura das tuas mãos nodosas...
essa chama de vida – que transcende a própria vida...
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma...


*Mario Quintana*
Em “Esconderijos do Tempo”, São Paulo, Editora L&PM Pocket, 1ª Edição, 1980.
Sinal de Ti

I

Não darei o Teu nome à minha sede
De possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.

Não darei o Teu nome à limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

Pois tudo isso é só a minha vida,
Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.

Mesmo no azul extremo da distância,
Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.

II

Tu não nasceste nunca das paisagens,
Nenhuma coisa traz o Teu sinal,
É Dionysos quem passa nas estradas
E Apolo quem floresce nas manhãs.

Não estás no sabor nem na vertigem
Que as presenças bebidas nos deixaram,
Não Te tocam os olhos nem as almas,
Pois não Te vemos nem Te imaginamos.

E a verdade dos cânticos é breve
Como a dos roseirais: exalação
Do nosso ser e não sinal de Ti.

III

A presença dos céus não é a Tua,
Embora o vento venha não sei donde.

Os oceanos não dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.

Só o olhar daqueles que escolheste
Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas.


*Sophia de Mello Breyner Andresen*
Em “Obra poética I”, Lisboa, Editorial Caminho S.A., 6ª Edição, 2001.
A Redenção

A divina emoção que tu me deste,
Já m´a deu uma árvore ao poente...
Não é só teu encanto que te veste:
A seiva e o sangue rezam irmãmente.

Às vezes nuvens, mares, areais,
Dão-me mais sonho do que os olhos teus...
É como se eles fossem meus iguais,
Tendo nós todos fé no mesmo Deus...

Não será isto o instinto, a profecia,
De que desfeitos e transfigurados
Viveremos num só, numa harmonia?...

Sim, deve se: amor, sonho, emoção,
São esforços febris d´encarcerados
Para quem a Unidade é a redenção.


*António Patrício*
Em “Cinco séculos de Sonetos Portugueses de Camões a Fernando Pessoa 
(organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelle)”, 
Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra Produção Editorial, 1ª Edição, 2013.
Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


*Mia Couto*
Em “raiz de orvalho e outros poemas”, Lisboa, Editorial Caminho S.A.,  5ª Edição, 2014.
Lembrança alada

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.


*Mia Couto*
Em "idades cidades divindades - poesia", Lisboa, Editorial Caminho S.A., 1ª Edição, 2007.
No silêncio terrível

No silêncio terrível do Cosmos
Há de ficar uma última lâmpada acesa.
Mas tão baça
Tão pobre
Que eu procurarei, às cegas, por entre os papéis revoltos,
Pelo fundo dos armários,
Pelo assoalho, onde estarão fugindo imundas ratazanas,
O pequeno crucifixo de prata
– O pequenino, o milagroso crucifixo de prata que tu me deste um dia

Preso a uma fita preta.
E por ele os meus lábios convulsos chorarão
Viciosos do divino contato da prata fria...
Da prata clara, silenciosa, divinamente fria – morta!
E então a derradeira luz se apagará de todo...


*Mario Quintana*
Em “O aprendiz de feiticeiro”, São Paulo, Editora Globo, 2ª reimpressão, 2005.

domingo, 12 de novembro de 2017

Vida das Lavadeiras

Sombra da mata
sobre as águas quietas
onde as iaras
vêm dançar à noite...
Não. Mentira.
Façamos versos sem mentir.
– Onde batem roupa
as lavadeiras pobres.

Sombra verde dos morros
no poço fundo
da Carioca
onde as mulheres sem marido
carregadas de necessidades,
mães de muitos filhos
largados pelo mundo
batem roupa nas pedras
lavando a pobreza
sem cantiga, sem toada, sem alegria.

Quero escrever versos verdadeiros.
Por que será, Senhor
que a mentira se insinua
nos meus versos?
Onde vive você, poeta, meu irmão
que faz versos sem mentir?


*Cora Coralina*

Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.
Motivo da rosa

A rosa, bela infanta das sete saias
e cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
o ar de menina, o recatado encanto
da mais humilde de suas aias,
a rosa, essa presença feminina,
que tanto excita como tanto acalma,
a rosa... é como estar junto da gente
um corpo cuja posse se demora
− brutal que o tenhas nesta mesma hora,
em sua virgindade inexperiente...
Rosa, ó fiel promessa de ventura
em flor... rosa paciente, ardente, pura!


*Mario Quintana*

Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre, 
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.
À minha irmã

Depois que a dor, depois que a desventura
Caiu sobre o meu peito angustiado,
Sempre te vi, solícita, a meu lado,
Cheia de amor e cheia de ternura.

É que em teu coração ainda perdura,
Entre doces lembranças conservado,
Aquele afeto simples e sagrado
De nossa infância, ó meiga criatura.

Por isso aqui minh'alma te abençoa:
Tu foste a voz compadecida e boa
Que no meu desalento me susteve.

Por isso eu te amo e, na miséria minha,
Suplico aos céus que a mão de Deus te leve
E te faça feliz, minha irmãzinha...


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, 
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.
Irmã

Irmã, − que outra expressão, por mais que a tente
Achar, poderei dar-te? −, em teu ouvido
Quero a queixa vazar confiantemente
Desta vida sem cor e sem sentido.

Amei outras mulheres, mas a urgente
Compreensão, sem a qual, por mais subido,
Falece o amor, esteve sempre ausente.
Em nenhuma encontrei o bem querido.

Em ti tudo é perfeito e incomparável.
E tudo o que de injusto e duro e amargo
Sofri, vieste delir com o teu carinho:

Com esse frescor de fruta desejável;
Com esse gris de teus olhos, que do largo
Me traz o ar sem mistura, o sal marinho.


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, 
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.
In memoriam

I

Seus poemas desenhavam seu fino hastil
suas corolas vibrantes como pequeninas violas
(ou era a vibração incessante dos grilos?)
seus poemas floriam na tapeçaria ondulante dos
prados
onde os colhia a mão das eternamente amadas
(as que morreram jovens são eternamente amadas...)

II

Seus poemas,
dentre as páginas de um seu livro,
apareciam sempre de surpresa,
e era como se a gente descobrisse uma folha seca
um bilhete de outrora
uma dor esquecida
que têm agora o lento e evanescente odor do
tempo...

III

E seus poemas eram, de repente, como uma prece
jamais ouvida
que nossos lábios recitavam - ó temerosa delícia!
como se, numa língua desconhecida,
sem querer, falassem
da brevidade
e da
eternidade da vida...

IV

Ah, aquela a quem seguiam os versos ondulantes
como dóceis panteras
e deixava por todas as coisas o misterioso reflexo
do seu sorriso;
e que na concha de suas mãos, encantada e aflita
recebia
a prata das estrelas perdidas...

V

Nem tudo estará perdido
enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome:
Cecília...


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre, 
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.
Adeus, meus sonhos!

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


*Álvares de Azevedo*
Em “Lira dos Vinte Anos”, São Paulo, Editora Nova Alexandria, 1ª Edição, 2000.
Anima Mea

Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bachante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: ‘Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?’

– Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).

Eu não busco o teu corpo... Era um troféu
Glorioso de mais... Busco a tua alma –
Respondi-lhe: ‘A minha alma já morreu!’.


*Antero de Quental*
Em “Sonetos, (antologia), org. José Lino Grunewald”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1991.
Saudade

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença, em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade
Minh'alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira,
41ª Edição, 1997.
Pescaria

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.


*Cecília Meireles*
Em “Flor de poemas”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 6ª Edição, 1984.
Viver é ir morrendo a beijar a luz

É o poema de quem rasga os versos
porque os sentiu demais para os dizer
e os ouve nas ondas tão dispersos
como os sonhos que teve e viu  morrer

De que me riu eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.

Eu rio porque tenho medo, um terro vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.

Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.


*António Patrício*
Em “Cinco séculos de Sonetos Portugueses de Camões a Fernando Pessoa
 (organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelle)”, Rio de Janeiro,
 Editora Casa da Palavra Produção Editorial, 1ª Edição, 2013.

sábado, 4 de novembro de 2017

A lavadeira

Essa Mulher...
Tosca. Sentada. Alheada...
Braços cansados
Descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
– é a lavadeira.

Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.

Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
– uma espumarada branca de sabão

Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo.

vestindo o quaradouro
de cores multicores

Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.

Viúva, naturalmente.
Tranqüila, exata, corajosa.

Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.

Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.

Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas.

Seu mundo se resume
na vasca, no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d’água.
De noite – o ferro de engomar.

Vai lavando. Vai levando.
Levantando doze filhos
Crescendo devagar,
enrodilhada no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.

Às lavadeiras do Rio Vermelho
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.
Canção para depois

                                             À maneira de Cecília

Quando esta pura voz que ouviste
Serenamente calar-se,
Como é que descobririas
          O seu disfarce?

Não digas palavras loucas
Em meus ouvidos de pedra!
Não busques na voz do vento
         Minha resposta...

Silêncio! E, depois, afasta
O passo que se avizinha...
Que ninguém veja esta face
          Que não é minha!


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre, 
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.
A flor e o ar

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito:
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor.
Pergunto ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

Arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
E nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.


*Cecília Meireles*
Em “Flor de poemas”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 6ª Edição, 1984.
Ao crepúsculo

Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!
É a hora, sim, do Enigma. Eis o momento
Da extrema-unção da luz... E tudo vai
Com ela. E só nos fica o pensamento!

Pela flor que murchou no esquecimento;
Pela asa que se eleva e logo cai;
Pelo sol, pelas nuvens, pelo vento,
Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!

Rezai por tudo quanto a morte leva,
Nas horas doloridas, em que a treva
Mostra seu negro vulto que arrepia...

E sinto, em mim, um vago horror profundo,
Uma tristeza já de fim do mundo,
Como se nunca mais houvesse dia...


*Teixeira de Pascoaes*
Em “Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade, Selecção, organização 
e introdução de José Fanha e José Jorge Letria”, Lisboa, 
Terramar – Editores, Distribuidores e Livreiros Ltda., 3ª Edição, 2004.
Ao crepúsculo

O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo
Que me adoça o pesar de estar em terra estranha.
E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo,
Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo,
Fitando no horizonte a linha da montanha.

A montanha é tranqüila e forte, e grande e boa.
Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar
(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)
Que tu, na doce paz da tarde que se escoa,
Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar.

Embalada na voz do grande solitário,
Tu mortificarás teu casto coração
Na dor de revocar o noivado precário.
(Ah, por que te confiei o meu desejo vário?
Por que me desvendaste a tua sedução?)

Se nos aparta o espaço, o tempo – esse nos liga.
A lembrança é no amor a cadeia mais pura.
Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga:
O mar segredará tudo o quanto eu te diga,
E a montanha, dir-me-á tua imensa ternura.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.
Antologia

Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava, descuidosa, e hoje não dança mais...

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava,
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava...

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava...
Seu destino foi curto e bom...
– Não a choreis.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.
O Lamento das Coisas

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada,
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!


*Augusto dos Anjos*
Em “Augusto dos Anjos, Obra Completa”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Aguilar S.A., 3ª reimpressão, 2004.
Nós

Tu vives a chorar, eu vivo a rir
E assim vamos morrendo de mãos dadas
Tu falas p´ra rezar, eu p´ra mentir
E as nossas bocas beijam-se encantadas...

Rezas por nós, por este amor a abrir
Em quimeras que nascem condenadas...
Minto por nós, para poder sorrir,
Erguer alegre as tuas mãos nevadas...

Tu crês e rezas, eu não creio e minto:
E as tuas rezas têm tanta piedade
Como as palavras trêmulas que eu sinto.

Mentir é afinal rezar sem crença:
E de mãos dadas, pela tempestade,
O nosso amor é uma oração imensa!


*António Patrício*
Em “Cinco séculos de Sonetos Portugueses de Camões a Fernando Pessoa 
(organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelle)”, Rio de Janeiro, 
Editora Casa da Palavra Produção Editorial, 1ª Edição, 2013.
Olhos Negros

Por teus olhos negros, negros,
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores...
E eles a dizer que não.

E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esperança,
Mas fiar-me eu neles, não.

Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim...
Nunca mais dizem que não.


*António Patrício*

Em “Cinco séculos de Sonetos Portugueses de Camões a Fernando Pessoa 
(organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelle)”, Rio de Janeiro, 
Editora Casa da Palavra Produção Editorial, 1ª Edição, 2013.