domingo, 17 de novembro de 2013

Redenção

I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!


*Antero de Quental* 

 Em “Poesia Completa” (1842-1891), Lisboa/Portugal, Editora Publicações Dom Quixote, 2001.

domingo, 10 de novembro de 2013

Quando era criança...

Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.
É hoje que sinto
Aquilo que fui
Minha vida flui
Feita do que minto.
Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.


*Fernando Pessoa*
Em Cancioneiro – Obra Poética V, São Paulo, L&PM Pocket Editores, 1ª Edição, 2007.
A criança que fui chora na estrada

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,


E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


*Fernando Pessoa*

Em “Cancioneiro – Obra Poética V”, São Paulo, L&PM Pocket Editores, 1ª Edição, 2007.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Para a manhã

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?
Acordaste e és bela
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!


*Miguel Torga*

 Em “Poesia Completa”, Lisboa/Portugal, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.
Sempre

Pensas que te não vejo a ti? Bem era!
Gravei tão vivamente n’alma a doce
E bela imagem tua, que eu quisera
Deixar de contemplar-te só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo:

Foges-me, escondes-te e, que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeléveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!
Vejo-te sempre! trago-te comigo!


*João de Deus de Nogueira Ramos*

Em “Campo de Flores – Poesias Líricas Completas”, Lisboa, Editora Moderna Editorial Lavores, 2002.