domingo, 20 de agosto de 2017

Idílio

Como eu preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes,
encosto-me a ti, que és árvore,
de onde vão caindo flores
sobre os meus olhos dormentes.

Encosto-me a ti, que és margem
de uma areia de silêncios
que acompanha pelo tempo
verdes rios transparentes;
tua sombra, nos meus braços,
tua frescura, em meus dentes.

Nasce a lua nos meus olhos,
passa pela minha vida...
- e, tudo que era, resvala
para calmos ocidentes.
Caminhos de ar vão levando
pura e nua essa que andava
com as roupas mais diferentes.

Olham pássaros, das nuvens,
entre a luz dos mundos firmes
e a das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua música
vai recobrindo o meu rosto
com um tremor que eu conhecia
nos meus olhos já levados,
idos, perdidos, ausentes...

(Leve máscara de pérolas
na minha face não sentes?)


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.

A COISA

A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o 
leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se
passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa 
a desconfiar que não foi propriamente dita.

*Mario Quintana*
Em “Caderno H”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.
Sonho de uma terça-feira gorda

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,
e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão constratado pelo sentimento felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como
uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
extáticas.

E a impressão em meu sonho era que estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente negro,
− Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro
e luminoso!

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes − Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas − deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,
Acotevelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negro, negros...
mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
− A profunda, a silenciosa alegria...
”   

*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.
O inútil luar

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
– É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
– ‘Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha.’

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 20ª Edição, 1993.
Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


*Manuel Bandeira*
Em “MANUEL BANDEIRA - Antologia Poética”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, 12ª Edição (7ª Impressão), 2001.

sábado, 12 de agosto de 2017

Imagem

És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d’água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...
A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.
Personagem

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silencioso, obscuro, disperso.

Todas as máscaras da vida
se debruçam para o meu rosto,
na alta noite desprotegida
em que experimento o meu gosto.

Todas as mãos vindas ao mundo
desfalecem sobre o meu peito,
e escuto o suspiro profundo
de um horizonte insatisfeito.

Oh! que se apague a boca, o riso,
o olhar desses vultos precários,
pelo improvável paraíso
dos encontros imaginários!

Que ninguém e que nada exista,
de quanto a sombra em mim descansa:
- eu procuro o que não se avista,
dentre os fantasmas da esperança!

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.


*Cecilia Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.

Fragmento da prosa “Itinerário de Pasárgada”...

Vou-me Embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge informou-me que Estrabão e Arriano, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso em que vencera a Astíages. Ficava a sudeste de Persépolis.

Esse nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas” ou “tesouro dos persas” suscitou na imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias como o “L’Invitation au Voyage” de Baudelaire.

Mais de vinte anos quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me Embora pra Pasárgada!” Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo mas fracassei. Abandonei a idéia.

Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da “vida besta”. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar.

Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e “não como forma imperfeita neste mundo de aparências”, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro e sim a “minha” Pasárgada.

*Manuel Bandeira*
Em “Poesia Completa e Prosa, Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora José Aguilar, 5ª Edição, 2009.
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


*Manuel Bandeira*
Em “Poesia Completa e Prosa, Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora José Aguilar, 5ª Edição, 2009.
Mim

O tempo transcorre em mim
Celeremente. Tão afoito que finda.
Acho que sei, afinal, a que vim.
E já me vou. Uma pena.
Não há tempo mais pra mim.
Volto à silente matéria cósmica
Que em mim, um dia, se organizou
Para me ser. Uma vez, uma vez somente.


*Darcy Ribeiro*
Em “Eros e Tanatos - A  poesia de Darcy Ribeiro”, Rio de Janeiro, 
Editora Record, 1ª Edição, 1998.
XXXV

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixa-me em paz na minha quieta rua…
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão…
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!…

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas…

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto…


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.
Ária Antiga

Chora o orvalho da luz sobre a rosa do dia
que se fecha. O jardim todo lembra um altar
para o qual sobe o incenso azul da nostalgia,
e onde os lírios estão de joelhos, a rezar.

Tu cantas para mim. Tua voz, triste e mansa,
vem trazendo, a gemer, dos confins da lembrança,
qualquer coisa de velho, onde a vida se esfume.

Quando a voz adormece um fantasma desperta.
A tua boca é como uma rosa entreaberta
que a saudade acalante e o passado perfume.

E essa velha canção que o teu lábio cicia,
no momento em que a tarde adormece no olhar,
enche o meu coração de uma vaga harmonia,
de um desejo pueril de ser bom, e chorar…


*Alceu Wamosy*

Em “Poesia Completa (Coleção Memória)”, Porto Alegre, Alves Editores, IEL, EDIPUCRS, 1994.
Sacerdócio Poético

‘Padre serás’ - meu pai em sua crença
Quis-me operário da missão divina.
E via-me garboso na batina,
Santo como ele, e de uma fé imensa.

Em mim dormita a imagem forte e densa
De um seminário, um rio, uma colina.
O internato ficou-me na retina,
Porém nem tudo sai como se pensa.

Não sendo a fé meu campo, meu negócio,
Cuidei de me afastar do sacerdócio.
Fiz-me padre? - Não pude, não podia!

Sou hoje o sacerdote controverso
Que todo dia vai rezar seu verso
No teu altar sagrado, Mãe-Poesia.


*Solange Rech*
Em “SACERDÓCIO POÉTICO”, Florianópolis/SC, Editora Editograf,  1ª Edição, 2004.
Leva meus versos

Leva meus versos, que nada pesam.
São carga leve, como isopor.
São luz de vela, são mãos que rezam,
Sorriem sempre, apesar da dor.

Leva meus versos, que não são nada
Perto da tralha que a gente traz.
Esses coitados não têm morada,
Pródigos filhos buscando paz.

Leva meus versos, trata-os com calma,
Pois só recebem desprezo e grito.
Vem das origens todo o seu drama
Já que nasceram de um pai aflito.

Leva meus versos, vê que me esforço
Por arranjar-lhes um lar fecundo.
Como pai deles, tenho remorso
De que se sintam párias do mundo.

Leva meus versos, guarda-os contigo.
Far-te-ão feliz nas horas tristonhas.
Nas tempestades serão abrigo
A resguardar o mundo que sonhas.

Leva meus versos e outros cantares,
tão desprezados, tão pobrezinhos.
Morrerão todos se os não levares
ou vão perder-se em ínvios caminhos.

Leva meus versos, são peregrinos
de almas sensíveis, como é a tua.
Que eles não sejam, como os meninos,
versos sem teto, versos de rua.

Leva meus versos, que nada pesam.
São carga leve, como isopor.
São luz de vela, são mãos que rezam,
sorriem sempre, apesar da dor.


*Solange Rech*
Em “SACERDÓCIO POÉTICO”, Florianópolis/SC, Editora Editograf,  1ª Edição, 2004.
Sou raiz
    
Sou raiz, e vou caminhando
sobre as minhas raízes tribais.

Velhas jardineiras do passado…
Condutores e cobradores, vós me levastes de mistura
com os pequenos e iletrados, pobres e remendados…
Destes-me o nível dos humildes em tantas lições de vida.
Passante das estradas rodageiras, boiadeiros e comissários,
aqui fala a velha rapsoda.
Escuto na distância o sonido augusto do berrante que marca
o compasso das manadas que vão pelas estradas.
O mugido, o berro, o chamado da querência, a aguada,
o barreiro salitrado, a solta, o curral, a porteira,
a tronqueira, o cocho, o moirão, a salga, o ferro de marcar,
rubro, esbraseado. A castração impiedosa.
Eu sou a gleba e nada mais pretendo ser.
Mulher primária, roceira, operária, afeita à cozinha,
ao curral, ao coalho, ao barreleiro, ao tacho.
Seguro sempre nas mãos cansadas a velha candeia
de azeite veletudinária e vitalícia do passado.

Viajei nas velhas e valentes jardineiras
do interior roceiro, suas estradas de terra,
lameiros e atoleiros, seus heróicos e anônimos condutores
e cobradores, práticos, sabidos daqueles motores desgastados,
molas e lataria rangentes.
Santos milagreiros eram eles. Onde estarão?
Viajei de par com os humildes que tanto me ensinaram.

Viajantes das velhas jardineiras, meus vizinhos
das estradas viaje iras…
Meus trabalhadores: Manoel Rosa, José Dias, Paulo, Manoel,
João, Mato Grosso, plantadores e enxadeiros, meus vizinhos sitiantes,
onde andarão eles?
Andradina, Castilho, Jaboticabal, comissários e boiadeiros, tangerinos,
esta página é toda de vocês.
Fala de longe a velha rapsoda.


*Cora Coralina*
Em “VINTÉM DE COBRE - meias confissões de Aninha”, São Paulo, 
Global Editora, 6ª Edição, 1997.