quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Dizendo adeus

Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do porto de chegada que nunca é aqui.
Estou sempre dizendo adeus até a Deus,
para o reencontrar em outra esquina de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus à solidão e à sombra.


*Lya Luft*
Em “Para Não Dizer Adeus”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª edição, 2005.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

No silêncio selado...

Ausência Misteriosa

Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo − vago luto
Envolve logo esta morada casta.

Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto…
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta…

Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.

E em toda casa, nos objetos, erra
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando…


*Cruz e Sousa*
Em “Obra Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, S/A., 

Reimpressão atualizada da primeira edição, 1995.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá
O encontro desse olhar

Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus
Me sinto incendiar

Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus
Já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais larirurá

Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor
E só se pode achar
Que a luz dos olhos meus
Precisa se casar.


*Composição: Toquinho / Letra: Vinicius de Moraes*

No segredo mantido...

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.


*António Gedeão*
Em “POESIA COMPLETA”, Lisboa, Editora João Sá da Costa, 1ª Edição, 1990.

Vem, doce morte

Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores − secreto −
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso − mais alto − refloresça.


*Henriqueta Lisboa*
Em "Flor da morte”, Belo Horizonte, Editora Calazans, 1949.
Traz‑me aquela flor

Traz‑me aquela flor do fim da tarde subindo as escadas até mim
traz‑me a rosa a glicínia o girassol para que eu me iluda e me engane
traz‑me o alecrim e a alfazema deixa que pense que é assim que se faz um poema

Traz‑me aquela flor do fim da tarde entre alecrim e alfazema
traz‑me as duas almas de um dilema para que eu abrace a ilusão de poder criar um poema

Traz‑me aquela flor do fim da tarde subindo as escadas até mim
traz‑me a rosa a glicínia o girassol para que eu me iluda e me engane

Traz‑me um cravo vermelho a chorar 

traz‑me o alecrim e a alfazema um regato de sol e luar e deixa‑me aprender
sozinho como se faz um poema

Traz‑me aquela flor do fim da tarde entre alecrim e alfazema
traz‑me as duas almas de um dilema para que eu abrace a
ilusão de fazer de mim um poema


*Adão Cruz *

Em "VAI O RIO NO ESTUÁRIO (Poemas de braços abertos)", Santa Maria da Feira/Porto, 
Edições Engenho, 1ª Edição, 2012.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Vês?

Veio o destino apartar-nos;
É preciso obedecer-lhe.
Mão oculta,
Quebrou, − e sem que a gente sentisse
O laço
Que nos prendia.

Porque seria?

Ainda quiz perguntar,
Mas, a quem?, doida agonia!

Não sei se fico contente,

Se hei de rir,
Se hei de chorar.

Há coisas
Na vida inútil da gente
Que é bem melhor aceitá-las,
Assim: −
Silencioso, indiferente…


*António Tomás Botto*

Em "Livro na Rua" (Biblioteca do Cidadão, Série Escritores Portugueses Clássicos),
Thesaurus Editora de Brasília, 2006.