quarta-feira, 26 de março de 2014

Venho de um jardim distante

Venho de um jardim distante florido de memórias
ou de um outro sonho qualquer entre risos e lágrimas
caindo de um céu de chumbo ou de um céu de magnólias.

Venho do seio do orvalho da madrugada num punhado
de vida libertada em qualquer rumor de passos brincando
nos telhados acesos pela luz do dia.

Venho de um jardim distante onde grinaldas de flores
abrilhantam a festa do azul dos tempos no incêndio do crepúsculo
ou no ardor da manhã do meu berço de mistério e universo.

Venho das esquinas do tempo em recordações avulsas
ao sabor das pontes da vida rasgando a cor do vento
que assobia nas ruas estreitas mordendo as pedras com punhais de silêncio.

De onde venho ninguém sabe.

Venho talvez da intimidade salgada do mar
ou de um jardim distante com um rio de passos e palavras
salpicado de pedaços de sol num rosário de pérolas
mordendo a neblina do nascer da vida.

Venho quem sabe da nudez adormecida no espesso silêncio
do tempo destinado à simplicidade da morte pelo sinuoso caminho de recordações perdidas no chão fundo das angústias e nos retalhos do nevoeiro.

Venho talvez das sombrias entranhas prenhes de fulvos
e ilusórios tesouros que emergem do fundo do mar sublimados
de cor e luz à superfície traiçoeira das águas bordadas de espuma.

Ou então,
ou então serei filho de um mundo sem resposta sujeito a ventos
e marés que enrugam o latejar das veias e o voo das artérias
com lugar no corpo rompendo o fluir da vida no interior do sonho.

Não.
Eu não venho de lugar algum fora da mente nem trago comigo a erva daninha.
Eu venho de um jardim distante entre o sonho e a razão,
onde o pensamento se agiganta para vencer as trevas e a ilusão.


*Adão Cruz*

 Em "VAI O RIO NO ESTUÁRIO (Poemas de braços abertos)", Santa Maria da Feira/Porto, 
Edições Engenho, 1ª Edição, 2012.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A velhice pede desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.


*Cecília Meireles*

Em "Poesia completa", Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Poema do tempo

O tempo é implacável,
Assim dizem os filósofos...

Os anos passam
Ou nós passamos pela vida...

Envelhecemos e as ilusões fenecem.
A juventude como por encanto
Fica para trás,
Ficando também com ela
Tudo que é sorridente e belo...

Quem me dera que pudesse
Voltar atrás num sentido breve
Abraçar por segundos apenas,
Num doce afago,
Aqueles desejos irrealizados
Que, muitas vezes, permanecem
Numa vivência constante...
Nem que fôssemos como as flores
Que, arrancadas de sua existência fugaz,
Permanecem nos jarros,
Enquanto possuem um resto de vida
Para morrer dias depois...

     
*Olympiades Guimarães Corrêa* 

Em “Neblina do Tempo/Por Quem Choram os Ciprestes”, Distrito Federal,
Editora Quick Printer, 1ª Edição, 1996.
Maturidade

Caminho entre as minhas perdas
ᅳ que são insetos escuros ᅳ
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

   
*Lya Luft*

Em “Para Não Dizer Adeus”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª edição, 2005.

domingo, 16 de março de 2014

Redenção

Sei que um dia virás. Não sei de onde, nem quando.
(No outono, quase sempre, o sol custa a chegar!)
E sei que hás de trazer na voz, no gesto brando,
Esse amor que me inspira e que me faz sonhar...

E tudo o que eu pensei, somente em ti pensando,
E tudo o que sonhei, sonhando te encontrar,
Como rosas de amor eu irei desfolhando
No caminho por onde houveres de passar.

E tudo o que sofri na vida inglória e obscura:
Os dias de saudade... As horas de amargura,
Enquanto te esperava, ansiosa e comovida,

Tudo compensará nesse dia em que vieres,
Um sorriso, um olhar, um beijo que me deres,
Tu que és o amor, tu que és o sol, tu que és a Vida!


*Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein*

Poeta parnasiana brasileira,conhecida como Colombina
 Em “Gratidão”, São Paulo, Editora Cupolo Ltda, 1954.
[...]
 
Quando vocês crescerem e lerem este Capítulo de Cervantes,
hão de achá-lo engraçadíssimo – e ao mesmo tempo triste. A loucura é a coisa mais triste que há…
– Eu não acho – disse Emília.

 – Acho-a até bem divertida.
E, depois, ainda não consegui distinguir o que é loucura do que não é.
Por mais que pense e repense, não consigo diferençar quem é louco de quem não é.
Eu, por exemplo, sou ou não sou louca?
– Louca você não é Emília – respondeu Dona Benta.
– Você é louquinha, o que faz muita diferença.
Ser louca é um perigo para a sociedade; daí os hospícios onde se encerram os loucos.
Mas ser louquinha até tem graça.
Todas as crianças do Brasil gostam de você justamente por esse motivo – por ser louquinha.
– Pois eu não quero ser louquinha apenas – disse Emília.
– Quero ser louca varrida, como D. Quixote, como os que dão cambalhotas assim…
E pôs-se a dar cambalhotas na sala.
” 
      
[...]   

*Monteiro Lobato*

 Em, “Dom Quixote das Crianças”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936.