domingo, 24 de janeiro de 2021

 “É preciso amar o inútil

[...]

Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil.
Criar pombos sem pensar em comê-los,
plantar roseiras sem pensar em colher rosas,
escrever sem pensar em publicar,
fazer coisas assim,
sem esperar nada em troca.
A distância mais curta entre dois pontos,
pode ser a linha reta,
mas é nos caminhos curvos
que se encontram as melhores coisas.
A música – acrescentou detendo-se ao ouvir os sons de um piano num exercício ingênuo.
– Este céu que nem promete chuva –
prosseguiu atirando a cabeça para trás.
– Aquela estrelinha que está nascendo, ali...
está vendo aquela estrelinha?
Há milênios não tem feito nada,
não guiou os Reis Magos, nem os pastores,
nem os marinheiros perdidos...
Não faz nada. Apenas brilha.
Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil.
Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza.
No inútil também está Deus.
Virginia apertou o ramo de rosas contra o peito.
Inútil é o amor que eu tenho por você, quis dizer-lhe.
Não disse.


[...]

*Ligia Fagundes Telles*
Em “CIRANDA DE PEDRA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 20ª Edição, 1984.

 A arte de ser avó

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito
nada para isso, de repente lhe caem do céu.

[...]
 
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias
da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores,
sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de
saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida.
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que
se lhe é ‘devolvido’. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o
seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com
extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você
não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se
acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar
de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos,
profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico,
deixado pelos arroubos juvenis.

[…]

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho,
lhe reconhece, sorri e diz: ‘Vó!’, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.


[…]

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto:
o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho – involuntariamente! –
bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro;
e depois o sorriso malandro e aliviado porque ‘ninguém’ se zangou, o culpado foi a
bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia:
não tem dinheiro que pague.


[...]

*Rachel de Queiroz*

Em “Elenco de Cronistas Modernos”, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 25ª Edição, 2013.

 “O tempo passa? Não passa

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse….
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

    
*Carlos Drummond de Andrade*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.


 Perguntas em forma de Cavalo-Marinho

Que metro serve
para medir-nos?
Que forma é nossa
e que conteúdo?
 
Contemos algo?
Somos contidos?
Dão-nos um nome?
Estamos vivos?
 
A que aspiramos?
Que possuímos?
Que relembramos?
Onde jazemos?
 
(Nunca se finda
nem se criara.
Mistério é o tempo
inigualável.)

*Carlos Drummond de Andrade*
Em “CLARO ENIGMA”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.

 Relógio do Rosário

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “CLARO ENIGMA”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.

 Sonho de um sonho

Sonhei que estava sonhando
e que no meu sonho havia
um outro sonho esculpido.
Os três sonhos superpostos
dir-se-iam apenas elos
de uma infindável cadeia
de mitos organizados
em derredor de um pobre eu.
Eu que, mal de mim! sonhava.

Sonhava que no meu sonho
retinha uma zona lúcida
para concretar o fluido
como abstrair o maciço.
Sonhava que estava alerta,
e mais do que alerta, lúdico,
e receptivo, e magnético,
e em torno de mim se dispunham
possibilidades claras,
e, plástico, o ouro do tempo
vinha cingir-me e dourar-me
para todo o sempre, para
um sempre que ambicionava
mas de todo ser temia...
Ai de mim! que mal sonhava.

Sonhei que os entes cativos
dessa livre disciplina
plenamente floresciam
permutando o universo
uma dileta substância
e um desejo apaziguado
de ser um com ser milhares,
pois o centro era eu de tudo,
como era cada um dos raios
desfechados para longe,
alcançando além da terra
ignota região lunar,
na perturbadora rota
que antigos não palmilharam
mas ficou traçada em branco
nos mais velhos portulanos
e no pó dos marinheiros
afogados em mar alto.

Sonhei que meu sonho vinha
como a realidade mesma.
Sonhei que o sonho se forma
não do que desejaríamos
ou de quanto silenciamos
em meio a ervas crescidas,
mas do que vigia e fulge
em cada ardente palavra
proferida sem malícia,
aberta como uma flor
se entreabre: radiosamente.

Sonhei que o sonho existia
não dentro, fora de nós,
e era tocá-lo e colhê-lo,
e sem demora sorvê-lo,
gastá-lo sem vão receio
de que um dia se gastara.
Sonhei certo espelho límpido
com a propriedade mágica
de refletir o melhor,
sem azedume ou frieza
por tudo que fosse obscuro,
mas antes o iluminando,
mansamente o convertendo
em fonte mesma de luz.
Obscuridade! Cansaço!
Oclusão de formas meigas!
Ó terra sobre diamantes!
Já vos libertais, sementes,
germinando à superfície
deste solo resgatado!

Sonhava, ai de mim, sonhando
que não sonhara... Mas via
na treva em frente a meu sonho,
nas paredes degradadas,
na fumaça, na impostura,
no riso mau, na inclemência,
na fúria contra os tranqüilos,
na estreita clausura física,
no desamor à verdade,
na ausência de todo amor,
eu via, ai de mim, sentia
que o sonho era sonho, e falso.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “CLARO ENIGMA”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.

 Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…

O porvir…
Sim, o porvir…


*Álvaro de Campos* (heterônimo de Fernando Pessoa)
Em “Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos”, Lisboa,
Editora Assírio & Alvim, 1ª Edição, 2020.

Não, não é cansaço...

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta −
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


*Álvaro de Campos* (heterônimo de Fernando Pessoa)
Em “Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos”, Lisboa,
Editora Assírio & Alvim, 1ª Edição, 2020.

 “Balada das Mãos

Se os teus olhos faltarem um instante da vida,
Se o coração vacilar retardando a batida,
Se o teu corpo cansado curvar-se vencido,
Na estrada comprida, na batalha perdida.

Tuas mãos, só tuas mãos!
Gêmeas no riso e na dor
Manterão sempre acesa a luz votiva do amor.

Mãos que se juntam na prece, num momento supremo,
Quando, no altar, duas vidas se juntam também,
Mãos que abençoam o filho que parte, talvez, para sempre,
E, depois, vão tecer um casaco de lã para o neto que vem.

Mãos que dão lenitivo aos que foram vencidos na vida,
Mãos que nunca recusam, num gesto, o perdão.

Mãos que arrancam das cordas de um violino nervoso e agitado,
A música divina que torna todos os homens irmãos.

Mãos que após o silêncio que cai sobre a vida que cai
Juntam o silêncio àquelas que um dia, também, foram mãos.
Também, foram mãos... Também, foram mãos.


Interpretação e Composição de *Moacyr Franco*
Veja aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Eia1lhuBNIw

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 “As Palavras Ressuscitarão

As palavras envelheceram dentro dos homens
separadas em ilhas,
as palavras se mumificaram na boca dos legisladores;
as palavras apodreceram nas promessas dos tiranos;
as palavras nada significam nos discursos dos homens públicos.
E o Verbo de Deus é uno mesmo com a profanação dos homens de Babel,
Mesmo com a profanação dos homens de hoje.

E, por acaso, a palavra imortal há de adoecer?
E, por caso, as grandes palavras semitas podem desaparecer?
E, por acaso, o poeta não foi designado para vivificar a palavra de novo?
Para colhê-la de cima das águas e oferecê-la outra vez aos homens do continente?

E, não foi ele apontado para restituir-lhe a sua essência,
e reconstituir seu conteúdo mágico?
Acaso o poeta não prevê a comunhão das línguas,
quando o homem reconquistar os atributos perdidos com a Queda,
e quando se desfizerem as nações instaladas ao depois de Babel?

Quando toda a confusão for desfeita,
o poeta não falará, do ponto em que se encontrar,
a todos os homens da terra, numa só língua – a linguagem do Espírito?
Se por acaso viveis mergulhados no momento e no limite,
não me compreendereis, irmão!


*Jorge de Lima*
Em “JORGE DE LIMA
POESIA COMPLETA
(Org. Alexei Bueno e texto crítico Marco Lucchesi [et al.]), Volume Único,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A., 1ª Edição, 1997.

 “Minha vida foi isso o tempo todo

Recomeçar ainda que partido;
Refazer o horizonte a cada passo;
Buscar razões no que perdeu sentido;
Mover-me sempre, embora o pouco espaço;

Compreender todas as vozes mudas,
Perdido entre o não dito e o não pensado;
Procurar no vazio alguma ajuda;
Repisar mil caminhos já pisados;

Falar sem nunca ter ouvido um grito
De aplauso, de protesto ou xingamento;
Pensar que era de céu o chão de lodo;

Os pés na terra, os olhos no infinito.
Sonhando estar lá longe o meu momento...
Minha vida foi isso o tempo todo.


*Mário Lago*
Extraí daqui: http://www.mariolago.com.br/minha_vida_foi_isso_o_tempo_todo.html

 “Tudo como antigamente

Somei noite mais noite olhando a lua
Decorei cada estrela que brilhava
Morri mais de uma vez em cada rua
E sempre a cada vez, ressuscitava
Pobre do tempo que não me alcançava
Nunca se alcança aquilo que flutua
Cama após cama a carne se gastava
E a alma devassa andava seminua
Fui Deus e rei poeta e vagabundo
Vivi mais de mil vidas por segundo
Ultrapassando sempre o mais em frente
Hoje deixo que o tempo me ultrapasse
Morri de vez mas se ressuscitasse
Faria tudo como antigamente.


*Mário Lago*
Extraí daqui: https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2013/06/01/tudo-como-antigamente-mario-lago/

Proclamação do amor antigramática

‘Dá-me um beijo’, ela me disse,
E eu nunca mais voltei lá.
Quem fala ‘dá-me’ não ama,
Quem ama fala ‘me dá’
‘Dá-me um beijo’ é que é correto,
É linguagem de doutor,
Mas ‘me dá’ tem mais afeto,
Beijo me-dado é melhor.
A gramática foi feita
Por um velho professor,
Por isso é tão má receita
Pra dizer coisas de amor.
O mestre pune com zero
Quem não diz ‘amo-te’ aposto
Que em casa ele é mais sincero
E diz pra mulher: ‘te gosto’
Delírio dos olhos meus,
Estás ficando antipática.
Pelo diabo ou por deus
Manda às favas a gramática.
Fala, meu cheiro de rosa,
Do jeito que estou pedindo:
‘Hoje estou menos formosa,
Com licença, vou se indo’.
Comete miles de erros,
Mistura tu com você,
E eu proclamarei aos berros:
‘Vós és o meu bem querer’.


*Mário Lago*
Extraí daqui: https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2013/02/21/proclamacao-do-amor-antigramatica-mario-lago/

Preparação para a morte

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre. Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

 “Soneto Italiano

Frescura das sereias e do orvalho,
Dos brancos pés dos pequeninos,
Voz das manhãs cantando pelos sinos,
Rosa mais alta no mais alto galho:

De quem me valerei, se não me valho
De ti, que tens a chave dos destinos
Em que arderam meus sonhos cristalinos
Feitos cinza que em pranto ao vento espalho?

Também te vi chorar… Também sofreste
A dor de verem secarem pela estrada
As fontes da esperança… E não cedeste!

Antes, pobre, despida e trespassada,
Soubeste dar à vida, em que morreste,
Tudo – à vida, que nunca te deu nada!


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

 “Soneto Inglês Nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.

As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao gênero sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.

Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo

Sem fé num mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

 “Soneto Inglês Nº 1

Quando a morte cerrar meus olhos duros
– Duros de tantos vãos padecimentos,
Que pensarão teus peitos imaturos
Da minha dor de todos os momentos?

Vejo-te agora alheia, e tão distante:
Mais que distante – isenta. E bem prevejo,
Desde já bem prevejo o exato instante
Em que de outro será não teu desejo, 

Que o não terás, porém teu abandono,
Tua nudez! Um dia hei de ir embora
Adormecer no derradeiro sono. 

Um dia chorarás… Que importa? Chora.
Então eu sentirei muito mais perto
De mim feliz, teu coração incerto.

    
*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

 Um Sorriso

Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.
A sombra já enoitava as moitas. A umidade
aveludava o musgo. E tanta suavidade
Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.

A viração do oceano acariciava o rosto
como incorpóreas mãos. Fosse mágoa ou saudade,
Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.
− Foi então que senti sorrir o meu desgosto...

Ao fundo do mar batia a crista dos escolhos...
Depois o céu... e mar e céus azuis: dir-se-ia
Prolongarem a cor ingênua de teus olhos...

A paisagem ficou espiritualizada.
Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia
Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada...


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

Três idades

A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto… Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina…

Ao ver-te a rir numa gaivota,
Meu coração entristeceu.
Por quê? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão… Sorrias tanto…
E o teu sorriso foi meu pranto…

Já eras moça… Eu, um menino…
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino…
Em pobres versos te chorei.
Teu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via…
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza é que mo diz…
Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris…

Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina…
A desventura te afeiçoou
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina…


*Manuel Bandeira*
Em “Estrêla da Vida Inteira”, Rio de Janeiro,
Editora José Olympio Editôra/Instituto Nacional do Livro, 2ª Edição, 1970.

domingo, 10 de janeiro de 2021

 “O Livro e a América

                                  Ao Grêmio Literário
           
Talhado para as grandezas,
P’ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
– Estatuário de colossos –
Cansado doutros esboços
Disse um dia Jeová:
‘Vai, Colombo, abre a cortina
Da minha eterna oficina...
Tira a América de lá’.

Molhado inda do dilúvio,
Qual Tritão descomunal,
O continente desperta
No concerto universal.
Dos oceanos em tropa
Um – traz-lhe as artes da Europa,
Outro – as bagas de Ceilão...
E os Andes petrificados,
Como braços levantados,
Lhe apontam para a amplidão.

Olhando em torno então brada:
Tudo marcha!... Ó grande Deus!
As cataratas – p’ra terra,
As estrelas – para os céus
Lá, do pólo sobre as plagas,
O seu rebanho de vagas
Vai o mar apascentar...
Eu quero marchar cos ventos,
Cos mundos... cos firmamentos!’
E Deus responde – ‘Marchar!’

‘Marchar!’... Mas como?...  Da Grécia
Nos dóricos Partenons
A mil deuses levantando
Mil marmóreos Panteons?...
Marchar co'a espada de Roma
– Leoa de ruiva coma
De presa enorme no chão,
Saciando o ódio profundo. . .
– Com as garras nas mãos do mundo,
– Com os dentes no coração?...
‘Marchar!’... Mas como a Alemanha
Na tirania feudal,
Levantando uma montanha
Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos,
Nem gládios a cavar fossos
São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
‘No pugilato tremendo
Quem sempre vence é o porvir!’

Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão:
O livro – esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Eólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade voou!...

Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O sec'lo, que viu Colombo,
Viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germen – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.

Vós, que o templo das idéias
Largo – abris às multidões,
P’ra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,
Agora que o trem de ferro
Acorda o tigre no cerro
E espanta os caboclos nus,
Fazei desse ‘rei dos ventos’
– Ginete dos pensamentos,
– Arauto da grande luz! ...

Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
Brada ‘Luz!’ o Novo Mundo
Num brado de Briaréu...
Luz! pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!...

*Castro Alves*
Em “Poetas Românticos Brasileiros”, Vol. I, São Paulo, Editora Lumen, s/ano.

 “Rimance das Donas de Portugal

Este é o singelo rimance
Por onde ha-de ir, bem ou mal,
Uma palavra de alcance,
Ainda que de relance,
As Donas de Portugal.
Do Portugal pequenino,
Mapa ainda em formação,
Entre os dedos do destino
Que o tirou como a um menino
De dentro do coração…

…Tempo de antanho indeciso,
Quando o tropel das pelejas
Mata ou exalta de improviso…
Paira sôbre êle o sorriso
Das Urracas e Tarejas.
Enquanto Portugal cresce,
Enquanto a conquista escalda,
Detrás da luta aparece
O vulto, que se esmorece,
De alguma Aldonça ou Mafalda…

Figuras mansas, de escassos
Perfis, sem côres nem brilhos.
Postas nos salões dos paços
Entre harpas de timbres lassos
E encantos de remedilhos
Graça dos tempos distantes.
Dos amigos alongados,
Em que se contam instantes
Da ausência dos inconstantes
Falando aos pinos calados.

Tempos de trovas discretas…
Sanchas, Brancas, Leanores…
Quando havia reis poetas
Que, com falas incompletas,
Iam trovando de amores…
E, entre místicas infantas,
De figuras nebulosas,
Assim, ó tempo, levantas,
Rostos de rainhas-santas
Que mudavam pães em rosas…

Outros rostos vêm à tona…
Vêm nas águas do Mondego…
Uma Dona e outra Dona…
E é o fado que as abandona,
Perdidas no seu socêgo…
‘Eu era moça e menina,
Por nome, D. Inês…’
Era uma vez uma sina…
Mais uma espada assassina…
E um príncipe… Era uma vez…

Ó coração que sempre amas!
Ó amor, que à desgraça impéles…
Como um sol de estranhas flamas,
Entre as suas nobres damas,
Aparece Leonor Teles.
D. Filipa descerra,
Do alto, a nova dinastia,
Que, após os feitos de guerra,
Há de sonha algum dia
Com a forma oculta da terra…

E este cantar se abandona
Ao gôsto de recordar
A primeira triste Dona
De olhos postos sôbre o mar
Que os navios aprisiona…
Cada noiva real, preciosa…
E cada infanta suave, e cada
Princesa, mais que uma rosa
Sensível e delicada…
E Joana, ‘desesperada,
Mui triste… muito chorosa…’
No tempo de náus e velas…
No paço se encontrarão
Brites e Marias belas
E a luz que se anima entre elas,
de Francisca de Aragão…
Romabisa… Aonia… Sombria
Estrada de Pastoral…
Ai de quem te viu um dia!
(‘A ela chamavam Maria
E ao pastor Crisjal…’)

Serranas vão para os montes.
Poetas vão para naufrágios,
Bem além dos horizontes…
E o amor fez de olhos fontes
Com água de velhos presságios…
Anda vagando pelo ar
Natércia, desconhecida…
Lereno oferece a vida
A alguém que lhe queira dar
Uma esperança perdida…

Pastorinhas encantadas…
Passam rebanhos, sanfonas…
Amadas e desamadas.
Misteriosas, tristes Donas…
E as Donas belas ou feias
Que não teve o Sonhador
Que ao seu sonho as fez alheias,
Namorado das areias
Onde, emfim, morreu de amor…

Madalena de Vilhena
Rompe os espaços, demente,
E o ar se enche de estrenha cena
Em que o fantasma lhe acena
Com gestos de antigamente…
Mas a tréva é iluminada
E o grande horror se dissipa
Quando, empunhando uma espada,
Arma os filhos, clama e brada,
A, de Vilhena, Filipa

O rimance encontra agora,
Como um pássaro no dia,
Donas em que o sonho mora
Vestido de nostalgia…
Velhos nomes de convento:
Violante do Céo… Leonarda…
E aquela em que o sentimento
Faz da desgraça alimento.
– Mariana, a que Deus não guarda…

E as musas passam veladas…
Sono de mágua e desengano…
Mortas figuras caladas…
Grandes paixões torturadas
Unindo Garret a Elmano…
Donas tôdas silenciosas,
Que valeram o universo,
Que nunca foram ditosas,
E morreram como rosas
Dando perfume a algum verso…

Donas mórbidas, vestindo
Seus trajes de cemitério,
E pôndo um sorriso lindo
– Para o fazer mais infindo –
Sobre seu grande mistério…
Donas de pálido rosto,
De violáceas olheiras,
Contemplando, no sol posto,
Tecer-se o véu do desgôsto
Pelas nuvens – fiandeiras…

E as donas que não tiveram
Sua morada nos paços…
Que entre monte e val nasceram,
E em val e monte viveram,
Namoradas dos espaços…
Que encheram da côr dos astros
A ânfora clara do olhar,
E sonharam náus e mastros,
E choraram sôbre os rastros
Dos filhos dados ao mar…

Donas simples, donas fortes,
Donas mortas, donas vivas,
Donas de diversas sortes,
Donas humildes e altivas,
Descuidadas, pensativas,
– Este rimance foi feito,
Donas! Para vos saudar.
Em cada verso imperfeito
O coração toma o geito
De uma vela a navegar…

Sóis tôdas aqui presentes,
Donas de antanho e de agora,
Da estirpe daquelas gentes
De largos sonhos ardentes
Partidos por mar afóra.
Gentes de perpétua lenda,
Que se fizeram assim
Como que se aprenda
Que a sua vida é uma senda
Para rimances sem fim…


*Cecilia Meireles*
Publicado na página da “Revista Lusitânia”, Num. 67, de 31 de outubro de 1931, Rio de Janeiro.
(foi mantida a grafia original)

Conto de fadas

Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.
 
Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras duma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...
 
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.
 
Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A princesa de conto: ‘Era uma vez...’.

 
*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

 “ORAÇÃO A SANTA TERESINHA DO MENINO JESUS

Perdi o jeito de sofrer.
Ora essa.
Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.
Quero alegria!
Me dá alegria, Santa Teresa!
Santa Teresa não, Teresinha... Teresinha... Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.
Me dá alegria!
Me dá a força de acreditar de novo
No Pelo Sinal
Da Santa Cruz!
Me dá alegria!
Me dá alegria, Santa Teresa!... Santa Teresa não, Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.


*Manuel Bandeira*

Em “Libertinagem & Estrela da manhã”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2000.

Só é meu o país que trago dentro da alma

Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.

Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
À procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.

Eis porque sorrio
Quando mal brilha o meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve na noite.

Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
Se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.

Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando para uma alta portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.

Só é meu
O mundo que trago dentro da alma.


*Manuel Bandeira (poema de Marc Chagall)*
Em “Estrela da vida inteira - Poemas traduzidos”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 20ª Edição (30ª Reimpressão), 2002.

 “OITO

Ó linguagem de palavras
longas e desnecessárias!
Ó tempo lento
de malbaratado vento
nessas desordens amargas
do pensamento...

Vou-me pelas altas nuvens
onde os momentos se fundem
numa serena
ausência feliz e plena,
liso campo sem paludes
de febre ou pena.

Por adeuses, por suspiros,
no território dos mitos,
fica a memória
mirando a forma ilusória
dos precipícios
da humana e mortal história.

E agora podeis tratar-me
como quiserdes - que é tarde,
que a minha vida,
de chegada e de partida,
volta ao rodízio dos ares,
sem despedida.

Por mais que seja querida,
há menos felicidade
na volta do que na ida.


*Cecília Meireles*

Em “Poesia completa – O Aeronauta (Volume 1)”, Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

PASTORA DESCRIDA

Eu, PASTORA, que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento,

fui falar ao eco antigo,
a cuja voz fui criada,
e que supus meu amigo.

‘Sou sempre a de antigamente’,
murmurei-lhe, enternecida.
E ele anunciou longe: ‘Mente!’

Mas era a minha verdade
e, vendo-me assim descrida,
padeci com a falsidade.

Eco amigo, eu não te iludo:
pastora sou destes prados
onde se confunde tudo;

mas sou de ontem e de agora,
dentro dos despedaçados
instantes de nenhuma hora...

A amargura não me aumentes...
E o eco antigo, infiel e exato,
repetiu-me perto: ‘Mentes...’

Vergada em móveis espelhos,
vi nas águas meu retrato,
chorei sobre mim, de joelhos.

Mas o gado que pascia
pelas colinas da aurora,
mascando as margens do dia,

veio a mim sem que o esperasse,
lambeu-me os olhos de outrora,
– reconheceu a minha face.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Retrato Natural (Volume 1)”, Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

 “O amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.

AMOR E SEU TEMPO

AMOR é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se toma a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “AS IMPUREZAS DO BRANCO”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.