domingo, 24 de janeiro de 2021

 A arte de ser avó

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito
nada para isso, de repente lhe caem do céu.

[...]
 
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias
da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores,
sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de
saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida.
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que
se lhe é ‘devolvido’. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o
seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com
extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você
não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se
acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar
de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos,
profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico,
deixado pelos arroubos juvenis.

[…]

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho,
lhe reconhece, sorri e diz: ‘Vó!’, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.


[…]

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto:
o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho – involuntariamente! –
bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro;
e depois o sorriso malandro e aliviado porque ‘ninguém’ se zangou, o culpado foi a
bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia:
não tem dinheiro que pague.


[...]

*Rachel de Queiroz*

Em “Elenco de Cronistas Modernos”, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 25ª Edição, 2013.

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