terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Realidade

Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho.

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho.

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei, se te perdi...


*Florbela Espanca*

Em “Poemas de Florbela Espanca”, São Paulo, Editora Martins Fontes, 7ª Edição, 2005.

domingo, 26 de janeiro de 2014

A Flor do Maracujá

Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do Sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!
Pelo jasmim, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá.

Pelas tranças da mãe-d'água
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá.

Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!

Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas
Que falam de Jeová!
Pela lança ensangüentado
Da flor do maracujá!

Por tudo que o céu revela!
Por tudo que a terra dá
Eu te juro que minh'alma
De tua alma escrava está!!..
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em - a -
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!


*Fagundes Varela*

Em Poesias Completas de Fagundes Varela, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Oceano Nox

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…


*Antero de Quental*

Em Poesia Completa (1842-1891), Lisboa/Portugal, Editora Publicações Dom Quixote, 2001.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O Livro da Solidão

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: ‘Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?’

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: ‘Uma história de Napoleão.’ Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência às noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo à lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E, sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.


*Cecília Meireles*
São Paulo, Folha da Manhã, 11 de julho de 1948.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Soneto do Amor Presente

Se o coração transpôs tanta distância
havida entre minh’alma e teu destino
é provável que eu torne à tua infância
e retome os meus sonhos de menino.

Às vezes fim e às vezes circunstância
vez por outra esperança ou desatino,
vai meu amor num rio de abundância
como a infância num gozo repentino.

Prometo não deixar que essa tristeza
descendente da ausência de nós dois
seja herdeira comum dessa saudade.

Quiçá o amor nos seja uma surpresa
em que sonhar não seja mais depois
mas agora em tamanha eternidade…


*Afonso Estebanez*

Copiei daqui:  http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/
Oferenda

Versos... Versos de amor! – Não digas nada!
Seria como o gume de uma espada
a palavra mordaz que eu ouviria.
Não fales! Para que?... Mas, se puderes,
Sorri, como sorris para as mulheres
que tanto te encantaram, certo dia...

Eu sei que é tarde e a primavera é morta,
que tudo é diferente... Mas, que importa
que rosas inda dê, velha roseira?
Que em pleno inverno uma cigarra cante
(por hábito, ousadia... ou por desplante,
ou simplesmente por ser cantadeira?)

São versos que pensei, à tua espera,
embora não passasse de quimera
o sonho que ficou no pó da estrada...
São rimas que busquei para dizê-las,
em noites solitárias, às estrelas...
– Vigília de mulher abandonada...

Recebe-os sem rancor! Eu já não digo
que deves aceitá-los como amigo,
tu que foste o Pierrô do meu passado!
A gente, quando é poeta, (não sabias?)
imagina loucuras, fantasias,
e faz de conta até haver pecado...

E vai rimando assim uns pobres sonhos;
recordações de dias mais risonhos
que o vento para longe foi levando.
Às vezes têm uns laivos de ironia,
o tom cinzento da melancolia
e lágrimas também, de vez em quando...

Escrevo-os para ti. E tu ignoras
que és a inquietude de todas as horas
que a tua incompreensão não adivinha.
Pierrô, há tanto tempo já que te amo
e nada digo e nem sequer reclamo
que compreendas um pouco a angústia minha.

Alegre e descuidada te apareço:
Oh! se soubesses como é alto o preço
do meu silêncio, imposto pela vida!
Mas, em versos sutis ou exaltados,
envio a ti – amado entre os amados,
fragmentos de minha alma comovida...

Recebe-os, pois, sorrindo, e nada digas:
faze de conta que são só cantigas
de uma cigarra pequenina e louca.
E deixa-me sonhar que tu, ao lê-los,
sem saber que são teus, sentirás zelos
dos beijos que sonhei dar-te na boca!


*Adelaide Schloenbach Blumenschein*
Poeta parnasiana brasileira, conhecida por seu pseudônimo “Colombina” 

Em “Inverno em flor”, São Paulo, Editora Cupolo Ltda, 1959.