sábado, 27 de fevereiro de 2021

 “Criar é um ato de sobrevivência
da identidade

não tenho nada
além desta linguagem
essa imagem
única testemunha de mim mesmo
fiel de humanidade
certidão
documento que eu me peço
se ingresso
na escuridão
nosso hoje de 3º ou 4º mundo
sem identificação

então
como um mistério
eu me decifro e abro
referências no espaço
num código refeito a
cada traço um passo
Perseguindo a identidade

e segue cega a pena
sábia diz por mim o que não sei mas sou
nessa perseguição eu sobrevivo
que outra mágica lança espelho ou balança
pode manter-me vivo?

propor o enigma me salva
da condenação a esfinge

ah estoy flaco como um bordel banhado de vermelho
e o policial grita cogito ergo sum
e tudo o que eu tenho é esta linguagem para gritar meu horror
ah nada tenho a proclamar
que as verdades se acabaram
erro entre ruínas
mas as ervas já brotaram

parir o horror parir
parir o amor ah
se o medo da loucura fosse banido
como um feitiço banido
banido
todas as portas se abrindo como pernas no parto
e cada um
de suas flores roncos sonhos e venenos carregado
pelos rios rindo
por estradas indo
soltando da boca seus mundos
num carnaval de verdade
a loucura d a r ia um novo mundo florido
esquecido
onde os monstros e vísceras são o mel de quentes favas
é a vida um pão cheiroso
que é comido.


*Nélson Xavier*
Texto extraído da Crônica “Um nome a não esquecer: Lara”, de Clarice Lispector,
publicada no “Jornal do Brasil”, em 15 de julho de 1972.

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