domingo, 7 de março de 2021

 “Epístola à Elisa

Torno a ver, cara Elisa, estas montanhas
Estes vales floridos, estas matas,
Este rio tão puro, tão saudoso,
Que me recordam a risonha imagem
Da minha doce e tão ditosa infância!
Foi aqui que aprendi, com a natureza,
A pensar, a existir! Minha cabeça
Senti arder aqui de um fogo ignoto!
Um delírio, um prazer, uma demência
Parecia absorver meu ser ignaro,
De todas as paixões; mas já sensível
Ao belo, e ao sublime.
Desvairada,
Em rimar, e medir gastava o tempo;
E mal sabendo manejar a pena,
Confiava ao papel meus pensamentos
Que, como um crime, a todos ocultava!
Tu os leste, ó Elisa, e caridosa
O riso sustiveste; eram tão simples,
Tão cheios de infantil ingenuidade,
Que assaz bem demonstravam a inocência,
A ignorância, e a vaidade da Poetisa!
Eu julgava que o Tejo, que o Mondego,
Por certo privilégio pertenciam
Aos poetas de todos os países,
E nesta persuasão, o Tejo undoso
Era sempre em meus versos decantado!
Eu tinha conseguido a grande dita
De encontrar um Camões, e um Bernardes (1)
Que em um cesto jaziam esquecidos
Entre velhos, e inúteis alfarrábios,
Pude escondê-los, e em segredo os lia.
Que ilustração! Que fonte de ciência!
Li, reli, decorei, compus idílios!
Era Tejo, Mondego, Douro, Lima,
Faias, vinhas, colméias, olivais;
Já versos pastoris, já piscatórios,
Com Tritões, Claucos, Tagides, Nereides
Ia sempre mesclando os meus conceitos;
Tudo amoldava, tudo me servia;
Quando obtinha licença, ou a tomava,
Iludindo do guia a vigilância,
Deixava o domicílio em leves saltos,
E apartando dos olhos as madeixas,
Que à discrição dos ventos ondulavam,
Sem resguardar das sarças os vestidos,
Calcando lamaçais, pisando espinhos,
Com a minha violinha sobraçada,
Corria a solidão, e lá, bem longe,
Sobre a mais alta rocha que encontrava,
Figurando esse monte bi-partido,
Como em trono Apolíneo me assentava,
E cheia de ignorância, e entusiasmo,
Julgando inspiração meu devaneio,
Discordes improvisos modulava;
Mas cheios de candura, e sentimento;
E por estes tão simples tirocínios
Eu me formava música, e poetisa! (2)
Em frente a um horizonte interminável
A vista deleitosa espairecendo,
O sol, as nuvens, a campina, o bosque,
Meu tosco metro estavam influindo!
Ó Elisa, é nos campos, e nos montes
Que os dons da natureza se apreciam!
Sob tetos pintados, e entre vidros
A mente vive presa e subjugada.
Ver despontar o dia, a roxa aurora
De aljofar esmaltar serras e prados;
Ver a purpúrea matutina rosa
Exalando perfumes, ostentar-se
Entre virentes repicadas palmas,
De brincadoura brisa balouçada;
Ouvir dos passarinhos prazenteiro
O hino repetido, e sempre novo,
O rio murmurando entre floridas
E verdejantes margens; a torrente
Que com horrível som se precipita
Das fundas grotas, e em seu curso arrasta
Troncos, rochedos, selvas, e piteiras;
As palmeiras sonoras agitando
As folhas, dos heróis tão cobiçadas;
O enxame sussurrante, o leve bando
De ledas, matizadas borboletas,
Que, como vivas flores, se suspendem
Em variada aérea contradança;
Insetos curuscantes, multicores,
Que aos matutinos raios espanejam
As asas, onde brilham, a esmeralda,
A ametista, a grisolita, o topázio,
A safira, e o rubi, mesclados de ouro,
De pérolas, corais e diamantes:
Ó minha Elisa, é mágica esta cena!
Nada pode imitá-la!... Mas que importa?
Acaso esta alma minha é inda a mesma?
Não viu meu coração agonizante
Nas torturas da dor esvaecidos
A ventura, o prazer e a esperança?
Torno a ver, é verdade, estas montanhas,
E todos os objetos portentosos
Que tanto meu espírito exaltaram.
A cena é inda a mesma; mas que importa,
Se já meu coração desenganado
O mesmo não é mais? Paixões, cuidados,
Rigores do destino, amor infausto,
De doces sensações o despojaram...
Uma dor, d’outra dor sempre seguida,
Distenderam as fibras do meu peito.
Vi quebrarem-se os laços mais queridos,
Mais necessários à existência minha;
Perdi meus pais, meus pais eu que tanto amava,
E inda esmagada de tão feros golpes,
Por cúmulo de dor perdi Tirséa!
Tu me restas, Elisa; mas tão longe,
Que em meus males não podes tomar parte.
Envia-me, sequer, uma lembrança,
Um suspiro, uma lágrima, que junta
Às que derramo nesta soledade,
Outra fonte produzam da saudade.


*Beatriz Francisca de Assis Brandão*

Em “MARMOTA FLUMINENSE” (jornal  de  modas  e  variedades),
Rio de Janeiro, de 18 de janeiro de 1853.


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Notas da Autora:

N.A.(1) Eis os meus mestres primitivos.
N.A.(2) Eu já nesse tempo aprendia música.

N.A. Antecipo a publicação desta Epístola, porque nela se vê que não segui outra lição
poética senão a portuguesa, e brasileira, no que fui constante; nenhuma,   
ou limitadíssima glória resulta disto às duas nações; mas esse mesmo quase nada pertence-lhes, é delas.

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