domingo, 5 de setembro de 2021

 “O VESTIDO BRANCO

Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze.
Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência
que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham
perigosa. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco
foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que
se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa
para quem tem perigo dentro de si. A pureza de que falo é límpida:
até as coisas ruins a gente aceita. E têm um gosto de vestido
branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como
se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta.
Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara
e faz minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo
é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza?
Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza
que não pôde ser. Acordei de madrugada com tanta intensidade
por um vestido branco de gaze, que abri meu guarda-roupa.
Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado.
Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.
E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.


*Clarice Lispector*
Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.

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