quarta-feira, 29 de setembro de 2021

 “Nunca estive cansada
 
Fiz doces durante quatorze anos seguidos.
Ganhei o dinheiro necessário.
Tinha compromissos e não tinha recursos.
Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior.

Fiz amigos e fregueses. Escrevi livros e contei estórias.
Verdades e mentiras. Foi o melhor tempo de minha vida.
Foi tão cheio e tão fértil que me fez esquecer a palavra
‘estou cansada’.
Cansada talvez a lavadeira do rio Vermelho da minha cidade.
Talvez a mulher da roça de São Paulo, nem mesmo ela.
Nunca ouvi da lavadeira a expressão ‘estou cansada’.
Sim, seu medo: faltar a freguesa e trouxa de
roupa para lavar e passar.
Suas constantes, quando na folga: ‘Graças a Deus!’
Seu dia começava com a aurora e continuava com a noite.
 
Tive trabalhadores e roçados. Plantei e colhi por suas mãos calosas.
Jamais ouvi de algum: ‘Estou cansado’.
Fagueiros pela tarde, corriam para o ribeirão.
Trocavam suas camisas e sentavam para jantar.
Sempre identificados com a lavoura, interessados,
preocupados com o tempo bom ou mau.
Acompanhavam o progresso das lavouras e a festa das colheitas.
Viam com prazer o paiol cheio e a tulha derramando,
embora não tivessem parte naqueles lucros.
Sentiam o bem estar obscuro e desprendido
de todo ‘peão’ que, trabalhando a dia, ajudados pelo tempo,
vêem o lucro da colheita e a vantagem do patrão.
Ponha sempre nas mãos do trabalhador, mesmo fraco, uma ferramenta forte.
Observe o resultado. A boa ferramenta estimula o trabalhador.
O trabalhador sente-se forte e seu trabalho se faz leve e ele se esperta
e até mesmo canta, abrindo o eito, estimula os companheiros,
joga pilhéria, graceja e alegra seus parceiros.
 
Estas coisas lá longe,
Nos reinos da cidade de Andradina.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

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