segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Lucros e Perdas

I

Eu nasci num tempo antigo, muito velho,
muito velhinho, velhíssimo.

II

Fui menina de cabelos compridos trançados, repuxados, amarrados com tiras
de pano.
Minha mãe não podia comprar fita.
Tinha vestidos compridos de babado e barra redobrada (não fosse eu crescer e
o vestido ficar perdido).
Minha bisavó, setenta anos mais velha do que eu, costurava meus vestidos.
Vestido ‘pregado’.
Sabe lá o que era isso?
A humilhação da menina botando seios, vestindo vestido pregado...
Tinha outros: os mandriões, figurinos da minha bisavó.

III

Fui menina do tempo antigo.
Comandado pelos velhos: Barbados, bigodudos, dogmáticos – botavam cerco
na mocidade.
Vigilantes fiscalizavam, louvavam, censuravam.
Censores acatados. Ouvidos.
Conspícuos.
Felizmente, palavra morta.

IV

A gente era tão original e os velhos não deixavam.
Não davam trégua.
Havia um gabarito estatuído decimal e certa régua reguladora de medidas
exatas:
a rotina, o bom comportamento, parecer com os velhos, ter atitudes de ancião.

V

Fui moça desse tempo.
Tive meus muitos censores intra e extralar.
Botaram-me o cerco.
Juntavam-se, revelavam-se incansáveis. Boa gente.
Queriam me salvar.

VI

Revendo o passado,
balanceando a vida...
No acervo do perdido, no tanto do ganhado
está escriturado:
– Perdas e danos, meus acertos.
– Lucros, meus erros.
Daí a falta de sinceridade nos meus versos.”


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

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