sábado, 13 de novembro de 2021

 “O Cântico de Dorva

I

Dorva é moça de sítio.
A mãe de Dorva morreu.
Chovia... chovia...
a noite inteira choveu enquanto gente da roça rezava alto, rezas da roça.
Dorva chorava – velava.
A morta entre as velas amarelas esperava entre flores: a mortalha, o caminhão,
o caixão que vinham da cidade.
O caixão pra morta O sufrágio pra Dorva.

II

O caminhão chegou de manhã cedo e voltou levando no caixão a mãe de
Dorva.
Levando gente, acompanhamentos, parando nos botecos das estradas –
matando o bicho
depois da noitada.
Sufrágio – luto,
coroa – caixão
englobados.

III

O luto de Dorva é pra sair na missa de sétimo ou trigésimo dia.
Já passou a missa.
Dorva tomou o lugar da morta na casa, na tina, no fogão.

IV

Dorva se chama Dorvalina.
Cabeça amarrada com lenço de chita.
Vestido grosseiro, apertado, descosturado.
Braço grosso, mãos vermelhas.
Perna grossa cabeluda.
Dorva de pé no chão: pé curto – descalço, esparramado fincado no chão.
Dorva, toda – estua sexo: vida nova.

V

Dorva é moça da roça.
Dorva lava roupa na tina: roupa grossa de homem – calça mescla, camisa de
riscado.
Geme o sarilho do poço.
Tibum... a lata vem cheia d’água.
Vai ensaboando,
vai cantando:
laranja-da-china limão-bravo, cana-doce se encontra aqui
se encontra acolá.
Pra dá, pra vendê
pra quem quisé
pra quem passá.
Se dá fogo, se dá água Não pode negá.
A cantiga de Dorva: alta, gritada
Bramido de fêmea – apelo enfeitado.

VI

É meio-dia; a sombra está marcando.
O sol num desafio de luz fustiga a poeira da estrada.
Silêncio no sítio.
Um galo canta longe.
Distante, um corno de ponteiro.
Boiadeiro vem vindo devagar...
Os homens lá no eito relanceiam enxadas.
O milharal chama Dorva.
O cheiro da terra chama.
O arrozal tem seus ninhos.
chamando Dorva.
Um assovio fino, espraiado fere Dorva.
Larga a roupa, deixa a tina.
Torce o vestido mesmo no corpo, molhado na barriga.
Olha pra os lados.
Gritam as angolas. Grita um bem-te-vi.
Dorva afunda no milharal.

VII

O ninho de Dorva.
A cama de Dorva
de palha e folha
na terra.
Deixa-se cair
sentada, deitada.
Sobre seu ventre liso, redondo desnudo,
salta o macho.
Um ofego de posse
tácito.
Sexo contra sexo.
Aquele cântico de Dorva, aquele chamado – piado de fêmea: obscuro
aflitivo
genésico
instintivo
veio vindo... veio vindo...
Rugindo
chorando
gritando
apelando
do fundo dos tempos do fundo das idades.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

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