domingo, 21 de novembro de 2021

Cântico primeiro de Aninha

A estrada está deserta,
vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de há muito se apagou.

A longa noite escura…
A caminhada…
Carreando pedras,
construindo com as mãos sangrando
minha vida.

Deserta a longa estrada…
Mortas as mãos viris que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta
Leiteando imensos vegetais.
Cavalgando o negro corcel da febre,
Desmontado para sempre.

Passa a falange dos mortos…
Silêncio. Os namorados dormem.
Flutuam véus roxos no espaço.
Na esquina do tempo morto
À sombra dos velhos seresteiros… A flauta, o violão, o bandolim.
Alertas as vigilantes,
barroando portas e janelas cerradas.
Cantava de amor a mocidade.

A estrada está deserta…
Alguma sombra escassa
buscando o pássaro perdido.
Morro acima. Serra abaixo. Ninho vazio de pedras.
Eu avante na busca fatigante
de um mundo impreciso,
todo meu.
feito de sonho incorpóreo
e terra crua.

Bandeiras rotas, despedaçadas,
quebrado o mastro na luta desigual.
Sozinha, pisada. Nua. Espoliada, assexuada.
Sempre caminheira, removendo pedras.
Morro acima. Serra abaixo.
Longa procura de uma furna escura,
fugitiva a me esconder.
Escondida no meu mundo.
Longe… Longe…
Indefinido longe, nem sei onde.

O tardio encontro.
Passado o tempo de semear o vale,
de colher o fruto.
O desencontro,
da que veio cedo e do que veio tarde.

A candeia está apagada
e na noite gélida eu me vesti de cinzas.

Meus olhos estão cansados
Meus olhos estão cegos
Os caminhos estão fechados.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”,
São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

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