sábado, 13 de novembro de 2021

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É com dor que dou adeus mesmo à beleza de uma criança – quero
o adulto que é mais primitivo e feio e mais seco e mais difícil, e que
se tornou uma criança semente que não se quebra com os dentes.
Ah, e quero ver se também já posso prescindir de cavalo bebendo água,
o que é tão bonito. Também não quero a minha sensibilidade porque
ela faz bonito; e poderei prescindir do céu se movendo em nuvens?
e da flor? não quero o amor bonito.
Não quero a meia-luz, não quero a cara bem-feita, não quero o expressivo.
Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não
é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso
lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de
humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização
impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que
é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim,
menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em
nossas mãos grossas, vir a se transformar em ‘pureza’, nossas
mãos que são grossas e cheias de palavras.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

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