domingo, 1 de maio de 2016

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO
   
                                              Love, love, my season. 
                                           Sylvia Plath

  
I
 
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
 
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento. 

II 

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.  

III 

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
 
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de Poesia Te tomava.
Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga 
E amavio contente o amor teria sido. 

IV 

Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida. 

Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
 
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
 
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença 
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
 
Ilustrada de revista
Editoria; de jornal
Teia cindida. 

Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.  

V

Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta

E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido

Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro

Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.  

VI 

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes

Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?  

VII 

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
NA minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?

Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça? 

Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?  

VIII 

De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura

Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
 
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me dixar amar
Sem amargura. E que me dêem

Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando

− Fazedor de desgosto –
Que eu te esqueça.  

IX 

Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas

Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
 
E porisso, quem sabe, tão amado.  



Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
 
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinqüenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E porisso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença.


*Hilda Hilst*
 
Em “JÚBILO, MEMÓRIA, NOVICIADO DA PAIXÃO”, São Paulo, 
MASSAO OHNO - M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1974.

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