domingo, 29 de agosto de 2021

 Pão-Paz

O Pão chega pela manhã em nossa casa.
Traz um resto de madrugada.
Cheiro de forno aquecido, de lêvedo e de lenha queimada.
Traz as mãos rudes do trabalhador e a Paz dos campos cheios.
Vem numa veste pobre de papel. Por que não o receber numa toalha de linho
puro e com as mãos juntas em prece e gratidão?
Para fazê-lo assim tão fácil e de fácil entrega, homens laboriosos de países
distantes e de fala diferente trabalharam a terra, reviraram, sulcaram, gradearam,
revolveram, oxigenaram e lançaram a semente.
A semente levava o seu núcleo de vida. O sol, a umidade o sereno, o calor e a
noite tomaram dela, e fez-se o milagre da germinação.
O campo se tornou verde em flor, e veio junto o joio, convivente, excrescente,
já vigente nas parábolas do Evangelho.
O trigal amadureceu e entoou seu cântico de vida num coral de vozes vegetais.
Venham... venham... venham...
E vieram os ceifeiros e cortaram o trigo, e arrancaram e queimaram o joio.
Cortaram e ajuntaram os feixes.
Malharam e ensacaram o grão.
E os grandes barcos graneleiros o levaram por caminhos oceânicos a países
diferentes e a gentes de fala estranha.
Foi transportado aos moinhos.
As engrenagens moeram, desintegraram.
Separaram o glúten escuro, o próprio e pequenino coração do trigo até as
alvuras do amido
de que se faz o pão alvo universal.
Transformaram a semente dourada
num polvilhamento branco de leite, que é levado às masseiras e cilindros
onde os padeiros de batas e gorros brancos ensejam, elaboram e levedam a
massa.
Cortam, recortam, enformam, desenformam e distribuem pelas casas,
enquanto a cidade dorme.

O Padeiro é o ponteiro das horas, é o vigia do forno quando a cidade se aquieta
e ressona.
É o operário modesto, tranquilo e consciente da noite silenciosa e da cidade
adormecida.
É mestre e dá uma lição
de trabalho confiante e generoso.

Pela manhã a padaria aberta, recendente, é a festa alegre das ruas e dos bairros.
Devia ter feixes de trigo enfeitando suas portas.

É por esse caminho tão largo, tão longo, tão distante e deslembrado que o pão
vem à nossa casa.
Ele chega cantando, ele chega rezando e traz consigo uma bandeira branca de
seis letras: Pão-Paz.
Haverá sempre esperança de paz na Terra enquanto houver um semeador
semeando trigo e um padeiro amassando e cozendo o pão, enquanto houver a
terra lavrada e o eterno e obscuro labor pacífico do homem, numa contínua
permuta amistosa dos campos e das cidades.
Para chegar a nossa casa em ritmo de rotina, o Pão fez sua longa caminhada na
terra e nos mares.
Passou de mão em mão
como uma grande bênção de gerações pretéritas.
Pela sua presença fácil em todas as mesas, eu vos dou graças, meu Deus.
Graças pela hóstia consagrada
que é Pão e Vida.
Pão de reconciliação do Criador com o pecador recebido na hora extrema.
Fazei, Senhor, com que as sobras das mesas fartas sejam levadas em Vosso
nome àqueles que nada têm e que a códea largada na abundância nunca seja
lançada com desprezo.
Haverá sempre uma boca faminta a sua espera.
Graças, Senhor, pelo primeiro semeador que lançou a primeira semente na terra
e pelo homem que amassou, levedou e cozeu o primeiro pão.
Graças, meu Deus, por essa bandeira branca de Paz que traz a certeza do pão.
Graças pelas mil vezes que os Livros Santos escrevem e confirmam
a palavra generosa e suave: Pão.

‘Havia um partir de pão em casa de Onesíforo quando Paulo ali entrou com
seus amigos’ (Epístola).


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

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