domingo, 29 de agosto de 2021

 “Daqui a vinte e cinco anos

Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos.
Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais daqui a vinte e cinco anos.
Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos
que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e
orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher,
de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior
maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia
terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo
terá falado muito mais. Mas, se não sei prever, posso pelo menos desejar.
Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva:
o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos,
porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças
são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados
em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser
decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública.
Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma.
E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais
de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos,
morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica
do problema da comida serão tão abençoados por nós como,
em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.
”  

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

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