domingo, 4 de julho de 2021

A Flor
 
Na haste
hierática e vertical pompéia.
Sobre para a luz e para o alto a flor...
Ainda não.
 
Veio de longe.
Muda viajeira
dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei
à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.

‘Cebola-brava’ na botânica sapiente de seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas ‘f’lores’: ‘De que val’isso?’
Displicente, exato, irredutível.

E eu, meu Deus,
extasiada,
vendo, sentindo e acompanhando, fremente,
aquela inesperada gestação.
 
− Um bulbo, tubérculo, célula de vida rejeitada, levada na hora certa
à maternidade da terra.
 A Flor...
Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético, inviolado
no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes
montando guarda.

Da Flor...

A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverência gosmenta de um verme rastejante.
O imprevisto atentado de alheia mão
consciente ou não.

Alerta. Insone.
Madrugadora.

Na manhã mal nascida, toda em rendas cor-de-rosa, túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite eu, partejando o nascer da flor, que ali vem na
clausura uterina de um botão.
Romboide.

Para a Flor...

Chamei a tantos...
Indiferentes, alheios, ninguém sentiu comigo o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão, ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial para o esplendor de sua efêmera vida vegetal.
Na minha aflita vigília pergunto:
– De que cor será a flor?

Chamo e conclamo de alheias distâncias alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo aquele ministério oculto Aquele sortilégio a se quebrar.
Afinal a Flor...
 
Do conúbio místico da terra e do sol − a eclosão. Quatro lírios semi-abertos,
apontando os pontos cardeais no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Cetro heráldico. Emblema litúrgico de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas do ‘Livro dos Reis’ ou do ‘Habacuco’.
E foi assim que eu vi a flor.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

Nenhum comentário: