quarta-feira, 14 de julho de 2021

 “Que o Deus venha
 
[...]

Mesmo para os descrentes há o instante do desespero que é divino: a ausência do Deus é um ato de religião. Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando.
Precisando mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva.
O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele.
Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha.
Ou talvez os que menos merecem mais precisem.
Sou inquieta e áspera e desesperançada.
Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor.
Às vezes me arranha como se fossem farpas.
Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha.
Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive.
E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado.
Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida.
Perceberei – assim como se come e se vive o gosto da comida.
Minha voz cai no abismo de teu silêncio. Tu me lês em silêncio.
Mas nesse ilimitado campo mudo desdobro as asas, livre para viver,
então aceito o pior e entro no âmago da morte e para isto estou viva.
O âmago sensível. E vibra-me esse it.
”  

[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.

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