segunda-feira, 19 de abril de 2021

UMA IRA

‘Esta’ – se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra – ‘esta’ é a minha prece de possesso.
Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma,
ou ao que estou com voracidade tomando, senão o de paixão.
O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo?
É a vontade de destruir, como se para este momento de destruir eu tivesse nascido.
Momento que virá ou não, a minha escolha depende de eu poder ou não me ouvir.
Deus ouve, mas eu me ouvirei?
A força da destruição ainda se contém um instante em mim.
Não posso destruir ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira;
então eu quero destruir a mim, que sou fonte dessa paixão.
Não quero pedir a Deus que me aplaque, amo tanto a Deus que tenho
medo de tocar nele com meu pedido, meu pedido queima,
minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia destruir
em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Para não esquecer”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1999.

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