segunda-feira, 20 de julho de 2015

Contradição

                                              Para Maria Helena

Sou a contradição de duas almas, trago-as
gêmeas no mesmo corpo e unidas num só ‘Eu’:
− uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsias e de gritos
num sorriso, que às vêzes, sem querer... sorri...

Uma que crê no mundo e que trabalha o belo,
que constrói com paciência, pelas próprias mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
nôvo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra, que sabe rir e escarnecer de tudo!
Quando fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais!

Uma, que quando a sós, o olhar longe povoa
de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingênuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz!
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
− diz que Deus é um brinquedo das filosofias,
a invenção de algum louco em momento de tédio!

Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,
julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, − o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela!

Uma que não cresceu e que se sente criança,
irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo;
outra, − que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vêzes sente mêdo...

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Aquela é a voz feliz das planícies contentes
matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim, que às vêzes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas!

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Sou a contradição de duas almas, − uma
onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, − a alma que crê que não tem alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-Cristo!

Duas margens debruando a risca de um caminho;
duas almas; se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa a terra... a outra se ergue, no céu...
Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, só sal... a outra é doce, é só mel!


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “Concêrto a Quatro Mãos” (JG de Araújo Jorge & Maria Helena), Rio de Janeiro, 
Editora Vecchi, 3ª Edição, 1966.

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