sábado, 3 de março de 2018

Testamento lírico

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, Senhor, que sempre me perdi

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.
À noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)

A criança que foi. Tão confundida.


*Hilda Hilst*
Em “Da Poesia”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2017.

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