domingo, 4 de março de 2018

A Manuel Bandeira:
Homenagem minha e de uma rua

I

Num tempo muito cedo em minha vida
Várias vezes visitei Tia Rosinha
Na sua casa da Rua da União.

O vento vinha do mar sobre os sobrados antigos
Do velho Recife: passava sobre a confluência
Dos dois rios da cidade  ̵  de águas tão diferentes!
E vinha balouçar-se nos ramos das ‘Casuarinas’
Da Escola Normal: balouçar-se e… plangentes.
̵  Os bicos das aves que havia no vento
Bicavam o liso reboco das casas da rua,
E nele abriam pequeninos orifícios…
Nele, naquele reboco, liso e vidrado como se fosse de louça.

Pela calçada da Assembléia,
Ao longo da Rua arborizada de ‘Carolinas’
Sempre de grandes frutos carregadas,
̵  Frutos cor de batina de padre franciscano  ̵
Passavam as normalistas,
Os estudantes, passam/passavam, do Ginásio Pernambucano
̵  Na paz recifense da tarde presente/perene, e quieta
Havia um pressentimento de que ali,
Alguns anos atrás, também passara um poeta.

II

Num sobrado da Rua da União,
Entre as ruas do Príncipe e Riachuelo,
Desfiaram-se as minhas primeiras horas de trabalho;
Era defronte do pequeno jardim do Senado
̵  Jardim de um canteiro somente  ̵  do qual um meu amigo,
̵  Excelente mentiroso  ̵  e, ali, alto empregado,
Era o ‘jardineiro’,
Nesse trecho da rua moravam lindas moças morenas,
Lindas moças muito brancas moravam…
Da prancheta em que desenhava, no primeiro andar,
Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves,
Num passo tranqüilo, conduzindo e ondulante,
Quase sempre na direção da Rua da Aurora.

Para esta rua saía, às quatro da tarde,
Com os meus companheiros de trabalho;
 ̵  Rua do Sol, pela manhã, e, à tarde, de sombra;
Rua de margem de rio, de calçadas prediletas…
Tinha-se a impressão que conosco, às vezes,
Conosco, ao nosso lado, ia também um Poeta.

III

No trecho em que termina na Rua Formosa,
Numa de suas casas, a Rua da União me foi moradia;
Era uma casa de corredor independente,
Daquelas que conservam em mistério a sala de visitas;
̵  Tinha/tem um sótão com janela para a rua,
De onde se viam as palmeiras da Igreja dos ingleses.

Uma noite me chamaram: alguém me procurava;
Desci a escada do sótão, fui até o corredor;
Diante de mim, sorrindo,
Estava uma poeta: Manuel Bandeira;
Estava presente, o pressentido ̵ duas vezes ̵ naquela Rua.

Falou-me de Nicolaus Lenau, de Maurice de Guérin,
De Gonçalves Dias, de Antônio Nobre, de… de… de…
E vi, e contemplei/compreendi.
̵  Através dele: Um ̵ um por um  ̵  todos os que vivem em poesia.

̵  Estava presente, o pressentido.

Na/da Rua da União passou/saiu para o Mundo
Um grande Poeta: Manuel Bandeira.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.

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