domingo, 9 de abril de 2017

Mãe Didi

Alguns perguntam pela minha vida, pelo embrião primário,
de como veio e se encontrou comigo a minha poesia,
a presença primeira do meu primeiro verso; eu respondo:

Ela cascateia há milênios.
Minha Poesia... Já era viva e eu, sequer nascida.
Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho.
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos:
pedras quebradas no rolar e bater de tantas pedras.

Dura foi a vida que me fez assim. Dura, sem ternura.
Dolorida sem sentir a dor.
Ausente sem sentir a ausência.
Distante tateando na distância. Tudo cruel. Todos cruéis.
Impiedosos.

Em torno, o abandono.
Aninha, a menina boba da casa.
Foi uma ex-escrava que me amamentou no seu seio fecundo.
Eram seus braços prazenteiros e generosos que me erguiam,
ainda rastejante, e
Aninha adormecia, ouvindo
estórias de encantamento.

Minha madrinha Fada...
Eu era Aninha Borralheira.
Era ela que me tirava da cinza
e me calçava sapatinhos de cristal.
Me vestia. Me carregava na Procissão.

Eu adormecia na cadeirinha de seus braços.
E sonhava que era um anjo de verdade
aconchegada na nuvem macia de seu xaile.

Toda a melhor lembrança da minha puerícia distante
está ligada a essa antiga escrava.
Na tarde da minha vida assento o seu nome na pedra rude
do meu verso: Mãe Didi.

Para você, Mãe Didi, está página sem brilho do meu Livro de Cordel.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.

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