domingo, 31 de outubro de 2021

Manuel em Pelote Domingueiro

Para Manuel Bandeira que, no dia 1º de junho de 1956  
(por ocasião do lançamento do meu disco de poesia),
me apareceu com um paletó muito engraçado.
(E como paródia a Anchieta.)


Dia 1° de junho
na casa do bom livreiro,
vi Manuel todo faceiro
e deixo o meu testemunho
nestes versos que desunho:
Manuel, no dia primeiro,
em pelote domingueiro.

Para que não lhe suceda
ter o pelote furtado,
aqui fica retratado:
é de lã, não é de seda,
proceda de onde proceda,
não é de nenhum moleiro
seu pelote domingueiro.

Este sim, vos asseguro,
que é pelote de poeta,
não de gente analfabeta
que se vista com apuro.
Brilha como ouro, no escuro,
cor de tigre verdadeiro,
seu pelote domingueiro.

De botões não tem um monte
nem veste mil cachopinhos,
mas vêm mirá-lo os vizinhos,
até sumir no horizonte,
e eu me faço Xenofonte,
do pano e do costureiro
do pelote domingueiro.
 
O pelote foi-lhe dado
para o domingo, somente.
Mas bem sabe toda gente
que é domingo e feriado
se Manuel está presente.
(Que ele já nasceu arteiro
sem pelote domingueiro.)

Se lhe roubam o pelote
(pois anda fazendo frio)
tumulto haverá no Rio
com ou sem General Lott.
Brigamos pelo capote
que custou tanto dinheiro:
o pelote domingueiro.

Pode haver pancadaria,
falta de luz e de bondes,
prisões de duques e condes
e greves de livraria.
‘Onde estás que não respondes?’
clamará Carlos Ribeiro
ao pelote domingueiro.

‘Invejosos e gatunos,
procurai outros negócios,
ide roubar os beócios,
imbecis, cretinos e hunos
– mais não sejais importunos,
ocultando o paradeiro
do pelote domingueiro!’

Tem dono e é bem empregado
o pelote justo e certo,
cor de tigre e de deserto,
e tão bem abotoado,
que só falta ser rajado
para ninguém chegar perto
do caro Manuel, fagueiro
no pelote domingueiro!


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (1918-1964), Volume 1”,
Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

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