domingo, 17 de outubro de 2021

Pela passagem do DIA DAS CRIANÇAS...

 “Menor Abandonado

                                                                Versos amargos para o Ano Internacional da Criança, 1979.

De onde vens, criança?
Que mensagem trazes de futuro?
Por que tão cedo esse batismo impuro que mudou teu nome?
Em que galpão, casebre, invasão, favela, ficou esquecida tua mãe?...
E teu pai, em que selva escura se perdeu, perdendo o caminho
do barraco humilde?...
Criança periférica rejeitada...
Teu mundo é um submundo.
Mão nenhuma te valeu na derrapada.

Ao acaso das ruas – nosso encontro.
És tão pequeno... e eu tenho medo.
Medo de você crescer, ser homem.
Medo da espada de teus olhos...
Medo da tua rebeldia antecipada.
Nego a esmola que me pedes.
Culpa-me tua indigência inconsciente.
Revolta-me tua infância desvalida.

Quisera escrever versos de fogo, e sou mesquinha.
Pudesse eu te ajudar, criança-estigma.
Defender tua causa, cortar tua raiz chagada...
És o lema sombrio de uma bandeira que levanto, pedindo para ti
– Menor Abandonado, Escolas de Artesanato
– Mater et Magistra que possam te salvar, deter a tua queda...
Ninguém comigo na floresta escura...
E o meu grito impotente se perde na acústica indiferente das cidades.
Escolas de Artesanato para reduzir o gigantismo enfermo
da criança enferma
é o meu perdido S.O.S.

Estou sozinha na floresta escura e o meu apelo se perdeu inútil na
acústica insensível da cidade.
És o infante de um terceiro mundo em lenta rotação para o encontro
do futuro.
Há um fosso de separação
entre três mundos.
E tu – Menor Abandonado,
és a pedra, o entulho e o aterro desse fosso.
Quisera a tempo te alcançar, mudar teu rumo.
De novo te vestir a veste branca de um novo catecúmeno.
És tanto e tantos teus irmãos na selva densa...
E eu sozinha na cidade imensa!
‘Escolas de ofícios Mãe e Mestra’
para tua legião.
Mãe para o amor.
Mestra para o ensino.

Passa, criança... Segue o teu destino.
Além é o teu encontro.
Estarás sentado, curvado, taciturno.
Sete ‘homens bons’ te julgarão.
Um juiz togado dirá textos de Lei que nunca entenderás.
– Mais uma vez mudarás de nome.
E dentro de uma casa muito grande e muito triste – serás um número.
E continuará vertendo inexorável a fonte poluída de onde vens.
Errante, cansado de vagar, dormirás como um rafeiro
enrodilhado, vagabundo, clandestino na sombra das cidades
que crescem sem parar.

Há um fosso entre três mundos.
E tu, Menor Abandonado,
és o entulho, as rebarbas e o aterro desse fosso.
Acorda, Criança,
Hoje é o teu dia... Olha, vê como brilha lá longe, na manchete vibrante
dos jornais, na consciência heroica dos juízes, no cartaz luminoso da
cidade, o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA.
”  

*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

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