domingo, 31 de outubro de 2021

 “Mulher da Vida

Contribuição para o Ano Internacional da Mulher, 1975.

Mulher da Vida,
minha Irmã.

De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e carrega a carga pesada dos
mais torpes sinônimos, apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.

Mulher da Vida,
minha irmã.

Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.

Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.

Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.

Flor sombria, sementeira espinhal gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono, enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa mulher corria perseguida pelos
homens que a tinham maculado. Aflita, ouvindo o tropel dos
perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e lançou o repto milenar:
‘Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra’.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.

O Justo falou então a palavra de eqüidade:
‘Ninguém te condenou, mulher… nem eu te condeno’.
A Justiça pesou a falta pelo peso do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada, ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que na sociedade
possam coexistir a inocência, a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.

Mulher da Vida,
minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida humilhada e sacrificada
para que a Família Humana possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida,
minha irmã.

Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes
vos precedem no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, 31.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”,
São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

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