domingo, 4 de fevereiro de 2018

Menina Mal Amada
 
[...]
     
No Passado
Tanta coisa me faltou.
Tanta coisa desejei sem alcançar.
Hoje, nada me falta,
me faltando sempre o que não tive.

Era eu uma pobre menina mal amada.
Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento.
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente
irreversível.
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha.
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos:
Minha bisavó e minha tia Nhorita.
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe.
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando
as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida,
me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar
e levar queixas doloridas para a mãe
que perdida no seu mundo de leitura e negócios não dava atenção.
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó.
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus mal feitos de criança
e exortava minhas irmãs a me aceitarem.
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades.
E fui marcada: menina inzoneira.
Sem saber o significado da palavra, acostumada ao tratamento
ridicularizante, esta palavra me doía.
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência com
cigarras, descia na casa das formigas, brincava de roda com elas,
cantava ‘Senhora D. Sancha’, trocava anelzinho.
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia.
Chamavam, mãe: ‘vem ver Aninha’...
Mãe vinha, ralhava forte.
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão.
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente.
Era nesse tempo, amarela, de olhos empapuçados, lábios descorados.
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: ‘Cieiro.’

Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas.
Não me deixavam participar de seus brinquedos.
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o braço
no ombro e segredava: ‘Não brinca com Aninha não. Ela tem Cieiro
e pega na gente.’
Eu ia atrás, batida, enxotada.
Infância... Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância...
Infância... Hoje, será.


*Cora Coralina*
Em “VINTÉM DE COBRE - meias confissões de Aninha”, São Paulo,
Global Editora, 6ª Edição, 1997.

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