quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 

Espectros

Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,
 
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda,
Erguendo o olhar, exausto de tanto estudo,
Vejo ante mim, no aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,
 
Da lâmpada à inconstante claridade,
(que, ao vento, ora esmorece, ora se aviva
Em largas sombras e esplendor de sóis)
 
Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva,
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.

Defronte da janela, em que trabalho,
Nas horas quietas, em que tudo dorme,
Sobranceira e viril, como um carvalho,
Alevanta-se espessa árvore enorme.

O zéfiro em um momento escrepa um galho
À sua barba: e, ou seja que a transforme
O vento ou meu olhar, a árvore enorme,
Erguida ante a janela em que trabalho,

Toma a feição de uma cabeça rude,
Sonolenta e selvática oscilando
Numa estranha, fantástica atitude.
 
E, posta a contemplá-la, esta alma cuida
Ver sob o azul do céu, diáfano e brando,
A fronte erguer, leonina, o último druida.


*Cecília Meireles*
Em “Espectros”, São Paulo, Editora Global, 3ª Edição, 2013.

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