sábado, 15 de junho de 2013

Voltarei a escrever-te? Para voltares a existir no que escrevo de ti. Demora-te hoje ao menos ainda um momento. Para olharmos a neve na montanha, os campos desertos, ouvirmos em nós o silêncio do mundo. 
[...]
Há o meu desejo de te fixar na palavra escrita que te diz, para ficares aí com o milagre que puder.

[...]
Querida Sandra. De vez em quando volto a perguntar-te porque te escrevo. Sei naturalmente que é para estar contigo. 

[...]
De todo o modo, como foi bom ter estado contigo nesta forma de não estares.

[...]
Porque curiosamente, onde menos te encontro é onde tu exististe. Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes tu rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre.


*Vergílio Ferreira*
Em “Cartas a Sandra”, Lisboa, Editora Bertrand, 1ª Edição, 1996.

2 comentários:

Brilho disse...

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Monólogo de Orfeu

Mulher mais adorada!
Agora que não estás,
deixa que rompa o meu peito em soluços!
Te enrustiste em minha vida,
e cada hora que passa
É mais por que te amar
a hora derrama o seu óleo de amor, em mim, amada.

E sabes de uma coisa?
Cada vez que o sofrimento vem,
essa vontade de estar perto, se longe
ou estar mais perto se perto
Que é que eu sei?
Este sentir-se fraco,
o peito extravasado
o mel correndo,
essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;
Tudo isso que é bem capaz
de confundir o espírito de um homem.

Nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga,
esse contentamento, esse corpo
E me dizes essas coisas
que me dão essa força, esse orgulho de rei.

Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música.
Nunca fujas de mim.
Sem ti, sou nada.
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,
minha amiga mais querida!

Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu:
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que ele, Orfeu,
Ficasse assim rendido aos teus encantos?

Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho
que eu vou te seguindo no pensamento
e aqui me deixo rente quando voltares,
pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo

Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo!

Composição: Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim

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A umas saudades

Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter,
ide? vos, minhas saudades
a meu amor socorrer.

Em o mar do meu tormento
em que padecer me vejo
já que amante me desejo
navegue o meu pensamento:

meus suspiros, formai vento,
com que me façais ir ter
onde me apeteço ver;
e diga minha alma assi:

Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter.

Ide donde meu amor
apesar desta distância
não há perdido constância
nem demitido o rigor:

antes é tão superior
que a si se quer exceder,
e se não desfalecer
em tantas adversidades,
Ide?

vos minhas saudades
a meu amor socorrer.

Gregório de Matos


Elaine,
"Vergílio Ferreira, in Cartas a Sandra",
Sem palavras, bela, belíssima mensagem!

Bom Domingo.

Fraterno abraço!

Elaine Bastos disse...

BIluminado!

Num período em que muitas coisas
ruins têm a alcunha de poesia...
Partilhar poemas e composições como
esses que você dividiu aqui...
É perder tempo buscando algum
adjetivo mais próprio que BELÍSSIMO!...
Um longo e forte abraço fraternurento.