quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Vai, ano velho

Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a esquina da sorte,
e no trinta e um, à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, para trás,
leva para a escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra semente
ou pérola na casca da ostra
como se outra semente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo,
o Sol e a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza:
a vida é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


*Affonso Romano de Sant'Anna*

Em “Poesia Reunida - 1965/1999, Volume 2”, Porto Alegre, Editora L&PM Pocket, 1ª Edição, 2007.

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